Por André Bozzetto Junior
“O mais corajoso dentre nós só
raramente tem a coragem de afirmar aquilo que sabe verdadeiramente...” (Nietzsche)
Eu
nem me lembro ao certo quantos lobisomens já exterminei ao longo desta jornada.
Sei apenas que foram vários... Mais de dez, provavelmente. O primeiro deles foi
há muitos anos atrás e tratou-se do desgraçado que assassinou a minha noiva. A
sensação de alívio e bem-estar que senti ao mandar aquele monstro nojento para
o inferno foi indescritivelmente prazerosa, mas breve, muito breve. A partir de
então, tenho me sentido permanentemente impelido a buscar novamente por aquela
emoção, como se só ela pudesse aplacar a dor e a revolta que me foi imposta na
noite em que presenciei minha adorável companheira sendo destroçada por uma
besta licantrópica. Desde aquela época, venho empregado a maior parte do meu
tempo e do meu dinheiro em uma permanente caçada a essas odiosas criaturas.
O
último caso a chamar a minha atenção por apresentar claros indícios de
atividade licantrópica dizia respeito a uma minúscula e remota comunidade rural
localizada no extremo oeste de Santa Catarina. O lugarejo foi notícia há alguns
anos atrás quando um “animal misterioso” atacou e matou mais de uma dúzia de
pessoas no intervalo de poucos meses e depois simplesmente desapareceu de forma
tão súbita quanto surgiu, sem ter sido abatido, capturado ou ao menos
devidamente identificado. Desde então, não houve mais relatos de mortes, mas ao
longo do tempo várias pessoas foram dadas como desaparecidas depois de terem se
aventurado naquela região. Eu já tinha conhecimento de um caso bem parecido
ocorrido no interior do Rio Grande do Sul e, analisando a similaridade da
situação, estava convencido de que havia um lobisomem aterrorizando aquela
localidade.
Viajando
pelo oeste catarinense, deixei para trás a última cidade logo depois do
meio-dia e perambulei durante toda a tarde por estradas de terra esburacadas e
costeadas apenas por mata, exceção feita a uma ou outra pequena propriedade
agrícola de aparência desolada e melancólica que esporadicamente se avistava na
margem do caminho. Chamou a minha atenção o fato de que durante todo o trajeto
apenas em duas ocasiões avistei pessoas pelos arredores e em ambas as circunstâncias
ela pareceram me observar de forma desagradável e até mesmo hostil.
Quando
finalmente cheguei ao núcleo comunitário da vila de agricultores, o entardecer
já se pronunciava no horizonte e a decadência daquilo que avistei ganhava assim
contornos ainda mais fantasmagóricos, uma vez que nada havia ali além de uma
pequena igreja e um galpão que fazia às vezes de bar e salão de festas. Ambas
as edificações se encontravam em péssimas condições de conservação. A igreja,
particularmente, aparentava tamanho desleixo que passava a impressão de que poderia
ruir e desabar a qualquer momento. Nenhuma residência era visível nos
arredores, o que me fez entender que os habitantes da região viviam em sítios
de localização ainda mais remota e só se reuniam no núcleo comunitário
ocasionalmente. Naquele momento em especial, havia apenas três ou quatro homens
no interior do bar e, tão logo estacionei meu carro diante do prédio, passaram
a me encarar de uma forma que interpretei como sendo um misto de surpresa e
desconfiança.
Ao
me aproximar da entrada do recinto, avistei sem dificuldades os profundos
sulcos na parte de fora da porta de madeira, que para mim logo indicaram uma
evidência da presença de um licantropo na área, uma vez que aquele tipo de
arranhão tão singular não poderia ter sido produzido por outra espécie de
animal. Do lado de dentro do prédio, quase deixei escapar um sorriso de
satisfação quando percebi que o lado interno da porta e as janelas eram reforçados
por grossas dobradiças e robustas barras de ferro. De imediato compreendi que
aquele local deveria ser utilizado com relativa frequência pelos moradores da
região como uma espécie de abrigo coletivo, capaz de protegê-los nas noites de
lua cheia de uma evidente ameaça licantrópica. Acreditei assim que a minha
intuição havia sido certeira.
Simulando
descontração, me aproximei do balcão, pedi uma cerveja e comecei a interrogar
os poucos presentes sobre as cascatas e demais belezas naturais que, graças a
uma antiga matéria de uma revista, eu soube que existiam na região. Acrescentei
ainda que morava em Florianópolis e que tinha me deslocado até ali a passeio,
uma vez que a minha intenção era passar vários dias perambulando pelo oeste do
Estado. Com certa relutância, aqueles homens rudes me explicaram – com um
sotaque muito carregado – que as tais cascatas ficavam em lugares de difícil
acesso e que, obviamente, eu só conseguiria chegar até elas durante o dia.
Aproveitando
a deixa, expliquei que pretendia passar a noite acampado nos arredores e que
partiria para o meu passeio ecológico
na manhã seguinte. Conforme eu previa, os caras ficaram inquietos ao ouvir a
minha ideia e – com perceptível embaraço – acabaram me dizendo que não era
seguro pernoitar em um acampamento e sugeriram que eu permanecesse no bar até o
fim do expediente e depois ficasse hospedado na casa do morador mais próximo.
Prontamente, agradeci pela gentileza e depois evitei levar a conversa adiante.
Era noite de lua cheia e eu estava convencido de que, mais cedo ou mais tarde,
o assunto do lobisomem inevitavelmente viria à tona e, se tudo corresse
conforme o planejado, eu poderia meter uma bala de prata na cabeça do
desgraçado e finalmente livraria aquela pobre gente do tormento que os
assombrava.
Pedi
algo para comer e me serviram um prato minguado com pão, queijo e salame e
ainda assim parecia ser o que de melhor tinham a me oferecer. Sentei em uma
mesa próxima da porta e fiquei observando o movimento enquanto comia. Na mesma
velocidade em que a noite chegava, mais e mais pessoas apareciam no bar.
Invariavelmente, todas olhavam para mim com expressões graves e de certa forma
apreensivas. Pensei que estavam simplesmente constrangidas com a minha
presença, decerto imaginando que explicações me dariam quando o licantropo
começasse a espreitar pelos arredores. Novamente, apenas simulei indiferença.
Quando
terminei de comer, o bar já estava completamente lotado. Devia haver pelo menos
umas cinquenta pessoas ali dentro e o clima de tensão que se construiu era
tamanho que no interior do recinto ouviam-se apenas murmurinhos, cochichos
furtivos entre aquelas pessoas que me observavam de uma forma que já era
praticamente acintosa. Aquela incômoda situação passou a me transmitir uma
sensação de velada ameaça, mas, infelizmente, quando cogitei me levantar e
fazer algo, já era tarde demais. Alguém se aproximou furtivamente pelas minhas
costas e desferiu um violento golpe na minha cabeça, fazendo com que eu
perdesse os sentidos.
Não
sei quanto tempo fiquei desacordado, mas quando despertei logo percebi que
estava deitado na relva, do lado de fora do bar. Constatei prontamente que os
meus agressores permaneciam trancados no interior do recinto, me observando
através das frestas das janelas. Quase ao mesmo tempo, escutei também um
rosnado vindo do interior escuro da mata circundante e então julguei ter compreendido
tudo: eu estava desempenhando o papel de uma espécie de oferenda. Cansados de
serem infernizados pela besta licantrópica que habitava a região e incapazes de
encontrar uma forma eficaz de se livrarem dela, aqueles indivíduos rústicos e
ignorantes apelaram para uma solução provisória: para evitar que os membros da
comunidade fossem devorados pelo monstro, procuravam saciá-lo, oferecendo a ele
banquetes ocasionais constituídos pela carne e pelo sangue de viajantes
incautos que tinham a infelicidade de aparecer por ali durante os ciclos da lua
cheia. Porém, comigo seria diferente.
Sem
suspeitar de que eu já desconfiava da verdade, os caipiras nem devem ter se
dado ao trabalho de me revistar atentamente, pois embora o revólver e a espingarda
estivessem no interior do meu carro – que já tinha sido removido dali – eu
ainda trazia presa ao tornozelo a pistola calibre 22 devidamente carregada com
projéteis de prata.
Quando
os arbustos se dobraram mediante a presença do monstro horrendo que se
aproximava rosnando de forma ameaçadora, permaneci encolhido junto ao chão,
fingindo estar petrificado pelo pavor. Discretamente, saquei a pistola e,
tentando manter a frieza, aguardei pelo momento certo de entrar em ação.
Acostumado
a abater vítimas indefesas e tomadas pelo medo, o lobisomem se aproximou de mim
de forma lenta e sem a ferocidade que é característica desse tipo de criatura,
como se estivesse convencido de que não seria preciso nenhum esforço para me
reduzir a pedaços. Quando ele já estava perto o suficiente para me permitir
sentir o fedor nauseante que exalava do seu corpo asqueroso, decidi que hora de
agir. De maneira decidida, me levantei com a pistola em punho e a apontei para
a cabeça do monstro. Sem pestanejar, disparei três tiros certeiros que perfuraram
a face medonha da criatura, fazendo com que ela caísse morta soltando apenas um
grunhido que me pareceu muito mais de surpresa do que propriamente de dor.
Segundos depois, o que estava caído diante de mim já não era mais um monstro
gigantesco e bizarro, mas sim um homem de meia idade de aparência extremamente
comum, o que me fez refletir novamente – ainda que apenas por um breve instante
– sobre o quanto é perturbador saber que podemos estar diariamente em contato
com um lobisomem sem jamais suspeitar que ele possa ser um de nossos vizinhos,
o padeiro do bairro ou o bêbado esquisito que avistamos de vez em quando no
boteco da esquina.
Eu
ainda estava distraído com esses pensamentos quando ouvi o barulho da porta do
bar sendo aberta às minhas costas. Antes mesmo que eu pudesse me virar, um
disparo ecoou pela noite e senti meu corpo sendo atirado ao chão com uma dor
muito intensa no ombro direito. Surpreendido e debilitado pelo tiro, apaguei
novamente.
Quando
despertei pela segunda vez, acreditei que já tinham se passado muitas horas e constatei
de imediato que alguma coisa extremamente ruim havia acontecido. Eu me sentia
de uma forma como jamais havia me sentido antes e essa sensação era tão
indescritível quanto terrivelmente perturbadora. Apavorado, percebi que meu
pescoço estava preso por uma corrente incrivelmente grossa e pesada, cuja outra
extremidade estava firmemente fixada em um pilar de concreto. Só então me dei
conta de que estava no interior da decadente igreja local e que toda a população
da comunidade deveria estar ali, me observando com expressões perversas e
doentias que eram realçadas pela luz fantasmagórica das tochas e das velas que
iluminavam de forma tétrica o ambiente.
Como
se querendo aumentar ainda mais o meu desespero, o dono do bar local se
aproximou e apontou o dedo para um ponto específico às minhas costas. Quando me
virei, dei de cara com o corpo nu e crucificado do antigo lobisomem suspenso em
sua forma humana no alto de uma parede. Percebi que, além dos ferimentos provocados
pelos tiros disparados por mim, ele ostentava também um profundo corte na
garganta, de onde visivelmente havia escorrido muito sangue. Foi apenas nesse
momento que me lembrei do meu próprio ferimento. Como não estava sentindo dor
alguma, levei a mão ao ombro e tive a impressão de que a lesão já estava
praticamente cicatrizada. Creio ter sido nesse momento que passei
acidentalmente a minha outra mão pelo rosto e percebi que ele estava lambuzado
por uma grande quantidade de sangue que, aparentemente, não era meu. Depois de
alguns instantes de angustiante reflexão, comecei a literalmente chorar de
desespero. O enigma tinha sido desvendado.
–
Você matou a nossa divindade! – gritou o bodegueiro, apontando para mim de
forma ameaçadora – Pois então agora ficará no lugar dela!
Sim,
uma divindade. Era isso que o
lobisomem representava para aquela comunidade miserável e esquecida por todos.
Um ídolo pagão e profano que desempenhava a função de manter aqueles indivíduos
unidos em torno de um objetivo comum: a realização periódica de assassinatos de
teor ritualístico que funcionavam como um culto blasfemo e perverso a algo que
eles consideravam extraordinário... Algo que eles temiam e respeitavam na mesma
proporção e que, de certa forma, os tornava especiais.
É
evidente que, enquanto eu permaneci desacordado, aqueles desgraçados me fizeram
ingerir o sangue do lobisomem abatido. Agora este fluído vital amaldiçoado
corre pelas minhas veias e a hedionda energia licantrópica pulsa em meu
interior, se apossando a cada segundo de um pedaço maior da minha mente e da
minha alma. Sinto que a lua cheia está raiando e com ela o monstro também
emergirá das profundezas do meu ser. Estou condenado, para sempre.
Ao
contrário do que eu almejava em minha arrogância e pretenso altruísmo, o ciclo
de horror que impera nessa região abandonada por Deus não terminou, mas apenas
mudou de nível. Um antigo ídolo tombou, um novo ídolo surgiu, a maldição
continua... E o culto também.