4 de jun. de 2021

A OESTE DA CIVILIZAÇÃO

 

 

Por Petter Baiestorf

 

            O Calor fritava meus pés, queimando-os impiedosamente. Meus sapatos furados haviam ficado para trás há quarenta quilômetros. Derretiam sob o insaciável apetite do sol escaldante. Uma mistura de sangue coagulado com suor e sujeira parecia fazer uma proteção natural, uma espécie de casco que funcionava como um escudo que me protegia das dores proporcionadas pelos cascalhos afiados da imensidão seca, sádica, daquele imenso deserto que eu insistia em atravessar.

            Cambaleando, continuava minha travessia rumo ao nada. Um nada que podia representar um tudo.

            Estava cansado, confuso, quase descrente nas palavras do Profeta do Oeste. Nunca siga um profeta, você pode perceber a burrada que fez somente quando for tarde demais para retornar ao seu próprio caminho.

            Mesmo cansado, exausto, a única coisa que fazia era seguir em frente, sempre em frente. Sempre rumo ao horizonte que dançava à minha frente, tremulando pela ação do Sol, tal qual uma miragem infernal. Sol que nunca dava tréguas. Horizonte lá longe, sempre a minha frente, sempre cozinhando aos quarenta e sete graus. Nenhuma sombra, somente calor, cascalhos, cactos, espinhos, galhos secos e animais peçonhentos.

            O vento batia em meu rosto enrugado, empoeirado, cicatrizado pela vida. Caminhava quase parado, deixando que os pensamentos me conduzissem a um estranho transe onde não parecia ter mais dúvidas, nem perguntas indecifráveis.

            Lembrava-me do cão sarnento de perna quebrada, magricela igual à Morte, que balançava alegremente sua cauda pela água podre que dei para que bebesse, há mais ou menos duzentos quilômetros atrás. Mas logo os pensamentos cessaram. Fome. Estava sem comer há mais de três dias. Minha última refeição havia sido uma sopa de cactos com pedaços de escorpião.

            Caminhava cambaleante, feliz que as crostas em meus pés aliviavam minha dor. Não sentia mais nem o calor angustiante que me torturava há vários dias. O silêncio fazia cantigas anarquistas ecoarem por minha cabeça. Cantigas tristes, lamúrias de cancioneiros sofridos que tentavam educar o povo com suas letras realistas.

            Muitos esqueletos humanos estavam espalhados pelo chão. Alguns, recém falecidos, ainda iriam entrar em colorida decomposição. Outros, tomados por vermes, já serviam de alimento aos abutres. Abutres eram uma espécie de ave, e aves, até onde lembrava, podiam ser comidas. Pegava minha atiradeira e alguns cascalhos, mas, desprovido de forças, só conseguia fazer com que as majestosas aves dessem pulinhos de um lado pro outro. Ignorava-me por completo. Estava fraco demais. Não conseguia mais nem atirar pedrinhas com uma atiradeira, algo que até crianças de cinco anos conseguiriam.

            Fome.

            Ajoelhava-me ao chão. Largava a atiradeira que já era apetrecho inútil. Com o resto de minhas forças arrastava-me até um dos muitos corpos em decomposição.

            Fome.

            Minhas mãos trêmulas agarravam um pedaço do braço podre de um defunto. Levava a podridão a minha boca animalescamente. Meus bons modos eu já havia esquecido quilômetros atrás, em alguma encruzilhada do destino. A carne podre não tinha paladar nenhum. Mastigava aquela pasta gosmenta sem gosto só a engolindo para tentar viver mais algumas horas.

            Com alguma coisa no estômago, lembrava-me quem eu havia sido.

            Lembrava-me da minha história. História estúpida, cheia de sofrimento e escolhas erradas. Lembrava-me dos poderosos que haviam me comprado com seu ouro. Lembrava-me de tudo. Lembrava-me que fui capataz de grandes fazendeiros. Era tocador de gado e, logo depois, Capitão do Mato. Lembrava-me do massacre contra sem-terras que comandei a mando dos patrões. Lembrava-me de cada uma de minhas mais de cinquenta vítimas. Lembrava-me dos corpos de pobres miseráveis que fiz arder nas chamas da injustiça. Lembrava-me dos policiais que ajudaram no massacre. Dor. Lembrava-me que num momento de lucidez me rebelei contra os patrões e havia sido caçado do mesmo modo que cacei pretos, índios e toda sorte de párias sociais que só queriam um pouco para sobreviver. Lembrava-me como fugi para a cidade grande, como mendiguei de porta em porta. Lembrava-me da fome e de como conheci um homem autointitulado Profeta do Oeste e de como me iludi com as suas palavras, enquanto ele reinava comodamente, alimentado por seus seguidores.

            Lembrava-me do dia em que o grande Profeta do Oeste convenceu seus seguidores a iniciarem a jornada em busca da Terra Prometida. Lembrava-me que fui um de seus seguidores, pois naquele momento preenchia meu vazio existencial. Lembrava-me que era apenas mais um tolo seguindo um lunático. Lembrava-me do instante que o Profeta do Oeste tombou sem forças, morrendo agonizantemente de fome, parando então a marcha para lugar nenhum. Lembrava-me como um bando de cegos esfomeados ficou sem rumo naquela terra árida. Lembrava-me do tolo que fui, e que agora era o último dos seus seguidores, o último perdido neste deserto de misérias.

            Todos os cadáveres ao meu redor eram dos discípulos do profeta que acabou seus dias como alimento dos urubus, possivelmente a coisa mais útil que já fez.

        Então, alimentado da carne putrefata de um cadáver desconhecido, percebia que os urubus estavam se aproximando de mim, todos com olhares de inebriante vitória, olhares que devoravam o pouquinho de esperança que ainda trazia comigo.

31 de mai. de 2021

AVOA, VINGANÇA!

 

 

Por Alan Cassol

 

            Era clara aquela noite na zona rural de Nova Erechim. Clara era a visão das estrelas. Cintilante sorria a Lua sobre a velha casa de telhado laranja. Bom, não posso deixar de lembrar das pegadas deixadas quando eu subia com os calçados embarrados. O telhado era a fuga para um paraíso desconhecido, uma espécie de lar onde eu ainda não sabia, mas procurava encontrá-lo olhando para o horizonte escuro, exceto quando avistava a luz do lampião do velho Ricardo, um vizinho distante, mas à noite tudo parecia perto e audível.       

            Era janeiro. Não era incomum a tv passar filmes da série “Sexta Feira 13” nas noites sábado. E foi numa noite de sábado que assisti Jason Voorhees arrancando uma cabeça com apenas com um soco. Meus dois primos: Cássio e Leandro, os irmãos, viam comigo. Minha avó já estava na cama. Meu tio, com seu palheiro vertendo cinza sobre as almofadas, dormia e acordava como se estivesse em um pesadelo melhor que sua realidade ébria e cancerígena. A garrafa de 51 sempre deitada sobre as pernas.

            Quando senti que nenhum deles daria falta de um menino de 7 anos, porque os olhos dos primos não desgrudavam da TV e o tio só renasceria do pesadelo - ou da vida - na manhã seguinte quando a vó o acordaria com um tapa no joelho para buscar lenha, como acontecia todo domingo. Escalei a pitangueira e saltei para o telhado. O som das corujas me fascinava. Pensava se os animais noturnos não sentiam medo do escuro, mas era o meu medo deles sentirem medo que me preocupava; entendo hoje. Lá em cima estava tudo calmo. Pensava no que seria de mim no futuro. Na verdade, eu queria uma luz que me fizesse seguir para uma estrada de teclas de piano, onde tudo seria música para acalmar os animais noturnos. Cada passo seria um chamado sonoro para uma nova realidade, bem longe de qualquer lugar que trouxesse lembranças de uma breve vida isolada de qualquer sinal de afeto. Mas uma luz apareceu naquela noite de janeiro. A luz do velho Ricardo balançava em um trote que parecia ser em direção ao paiol de sua propriedade.

            Fiquei observando a luz do lampião até ela parar de se mover. Um brilho saia da janela do paiol. Velho Ricardo nunca ia até lá à noite, mas não achei estranho, afinal, por que seria? O que me fez gelar o estômago foi o silêncio dos animais, algo que também nunca acontecia, mas isso sim foi estranho. O mundo se calou no interior da minúscula Nova Erechim. Alguns instantes depois da luz se aquietar perto da janela do paiol, ela começou a piscar, mas foi de um jeito que pareceu ser alguém passando e voltando na frente dela. O mais estranho foi quando ela subiu pro segundo andar do paiol, que cobria metade do espaço, sem que a escada fosse usada, e eu sabia muito bem onde a escada ficava. Não resisti à curiosidade que me dominou como se fosse “aquela” canção que eu tanto procurava. Desci do telhado, dei a volta por trás da casa para ninguém me ver, fui ao porão, peguei o lampião alimentado por querosene e me coloquei no rumo do paiol do Ricardo. E aquele silêncio.

            A poeira da estrada de chão contrastava com a luz do lampião. Naquela época não chovia há mais de 20 dias. A colheita estava comprometida. O banho de rio era resumido em pequenas poças. Nada parecia ser real para mim. A vida era aquela estrada escura e cheia de pedregulhos traiçoeiros, mas havia um agravante naquele momento: barulho de asas batendo sobre a minha cabeça. Aquele som constante me acompanhou até a porteira do rancho do velho Ricardo e parou. Passei o lampião pelo arame farpado e pulei para o lado de dentro me apoiando na estaca de madeira que servia de alicerce para o cercado. A porta do paiol estava escancarada. Fui entrando lentamente e não foi preciso mais que dois passos para avistar o velho Ricardo caído perto da janela lateral, a janela que brilhou para mim.

            Hesitei por uns 2 minutos até que tive coragem de me aproximar. Chamei pelo nome dele. Nada. Chamei de novo: nada. Comecei a suar e pensei em sair correndo, mas desisti da ideia e me agachei ao lado de Ricardo. Os olhos estavam abertos e imóveis. Nenhum sinal de movimento. Peguei na mão dele para tentar levantá-lo, puxá-lo, ou sei lá o que eu queria fazer naquele momento. Constatei: estava diante de um defunto.

            Ricardo perdeu o filho dois anos antes daquele dia. Henrique, de 28 anos, estava voltado de Nova Erechim a pé, a distância era de 3 quilômetros até o rancho de seu pai, e quase 4 da casa de minha vó. Ele foi atropelado, e seu algoz sequer parou para socorrê-lo. Nunca souberam quem o atropelou. Aquilo decretou o fim da vontade de viver do velho Ricardo. Anos antes, de infarto, a esposa partiu da existência terrestre, e o choro foi em dobro por conta de um resultado positivo para câncer de pulmão. Era Ricardo e Henrique, agora, não era mais ninguém.

            Olhando para aquele corpo no chão, me transportei para um mundo onde não havia dor e culpa, porque tudo era silencioso e o ar amaciava os pulmões com um sopro doce e frio. A morte não era novidade para mim. Talvez a minha necessidade de sair daquele lugar era o desejo de reencontrar meus pais me esperando sobre uma plataforma, e, logo depois, me levar para um portal brilhante, adentrando numa atmosfera sem maldade, sem brigas, sem agressão. Uma dúvida pairou e voltei para o paiol. “Como o lampião foi parar no andar de cima?” – pensei. Subi pela escada e lá estava a luz, mas ela não estava sozinha. Uma coruja me fitou. Os olhos dela estavam vermelhos, mas foram voltando à forma normal aos poucos. Com seus olhos amarelos e brilhantes, ela alçou voo e sumiu na noite. Lembro de ter ficado com muito medo, o que me fez tomar o rumo da casa da vó, correndo.

            O silêncio daquela noite permitia ouvir meus batimentos cardíacos. Estava correndo, trotando. “O que vou dizer? Como vou explicar que o Ricardo estava morto? Foi a coruja que levou o lampião para cima?” Meus olhos estavam embaçados pelo suor e lágrimas, eu estava cego, meu lampião ficou para trás. Subitamente, bati em alguma coisa e cai. Sangue escorria do joelho esquerdo. “Bruno, meu pai morreu!” – disse Leandro. “Ele não morreu, seu maldito. Estamos indo à cidade chamar a ambulância” – a voz esperançosa era do Cássio, o mais novo. Ainda estava deitado quando eles disseram para eu correr ajudar a vó, que estava sozinha com meu tio. Os dois sumiram dentro da escuridão. Se para a dor ou para a esperança, nem eles sabiam.

            Cheguei em casa ofegante. Demorei 2 minutos para conseguir falar alguma coisa. Minha vó estava sentada no sofá, segurando a mão do meu tio. Ele estava morto. Leandro estava certo. Ouvi o chirriar da coruja. Fui para fora da casa e a avistei sobre um galho da pitangueira. De novo ela me fitou com os olhos vermelhos. Ela saiu do galho e pousou do meu lado. Caminhou em círculos, olhou mais uma vez, com os olhos amarelados e brilhantes, e sumiu na noite não mais silenciosa. Era possível ouvir o coaxo dos sapos e a água correndo na sanguinha. A vida noturna voltara ao normal, como se a morte fosse o despertador.

            Na manhã seguinte, com a ambulância levando o corpo do meu tio e do velho Ricardo para o necrotério, fui eu quem buscou a lenha para o fogão. Fui eu quem preparou as malas. Fui eu que deixei na memória as faces vermelhas e ensopadas de Leandro e Cássio para até nunca. O beijo na testa de minha avó foi o último adeus. Fui levado para a “casa de crianças órfãs”, de onde saí aos 16 anos para trabalhar em uma fábrica de ração para animais. No trajeto entre a casa da avó e Nova Erechim, tive a companhia dela voando lá longe, mas como se estivesse acompanhando para ter certeza de que eu ficaria bem. “Chegou o dia, estou saindo desse lugar”.

            Anos depois, já adulto, retornei à Nova Erechim para regularizar alguns documentos. É claro que nunca mais vi a coruja, mas aquele olhar nunca saiu de mim. O paiol do velho Ricardo. O lampião flutuando e piscando. Tudo foi um aviso, um chamado. No cartório, que funcionada no mesmo prédio da delegacia, consegui convencer a me deixarem olhar o atestado de óbito do meu tio, do velho Ricardo e, já que estava na mesma sala, por que não o boletim de ocorrência do Henrique.

            Descrevo aqui um pequeno trecho da ocorrência:

 (...) O veiculo perdeu o controle após atropelar a vítima, saiu da estada, derrubou algumas dezenas de pés de milho e esmagou um tronco apodrecido no chão. Nas entranhas do tronco, um ninho de coruja, com dois filhotes já sem vida. Ao lado, uma garrafa de cachaça Pirassununga 51contendo o liquido ainda intacto (...)

            Tudo ficou claro sobre quem havia atropelado Henrique. Mas o que reluto em acreditar, com as faculdades mentais ainda em saudável funcionamento, é se, de fato, a coruja esteve por trás disso tudo. Hipoteticamente pensando, ela foi responsável pelo alivio da dor do velho Ricardo, da justiça contra meu tio e da minha saída daquele lugar. Imagino se foi as vezes que ela me observou no telhado procurando um horizonte, ou se foi só vingança. Quem sabe, foi de uma mãe que perdeu os filhos, para um filho que perdeu os pais. De qualquer maneira, obrigado, velha coruja. Que você também esteja em paz.

24 de mai. de 2021

O RELATO DE ARLINDO PAVAN

 

Por André Bozzetto Junior

 

 

Bento Gonçalves, 12 de julho de 1902

Prezado Senhor,

            Se minha vontade foi cumprida de acordo com o meu testamento, este manuscrito chegou às suas mãos após a minha morte. Se assim não o for, peço a gentileza para que interrompa a leitura e o desconsidere. Contudo, se minha ordem foi devidamente obedecida, recomendo que leia o texto até o final, pois creio que o relato que faço aqui é de grande importância para esclarecer um misterioso caso ocorrido há dez anos atrás lá pelas bandas da Campina Velha, do qual muita gente ouviu falar, mas que apenas uns poucos sabem da verdade. Lembro-lhe que, embora tenha tido excelentes tutores na infância, não sou um homem das letras, mas apenas um fazendeiro, e escrevo como tal. Seja tolerante, portanto, com o que julgar deficiente em minha redação. Também destaco que não gastarei tinta a papel para tentar convencer-lhe de que aquilo que afirmo aqui é verdade. Prefiro acreditar que a minha reputação é suficiente para lhe assegurar a seriedade com que traço estas linhas.

            Meu envolvimento com essa história iniciou na noite em que os senhores José Colognese e Ademar Pecatti compareceram à minha casa pedindo ajuda. Como deve saber, eles são os proprietárias das fazendas São Luís e Montes Claros, as duas maiores da região da Campina Velha. Contaram-me a assombrosa história do misterioso animal que vinha atacando por aquelas bandas. Segundo as palavras dos assustados senhores, mais de uma dezena de vacas já havia sido morta, além de quatro cavalos e quatro cães. E o pior: três pessoas já tinham sido vitimadas pelo bicho desconhecido, sendo dois capatazes da fazenda Montes Claros e até o senhor Miguel Colognese, pai de José e fundador da fazenda São Luís.

            Ao longo de onze meses, a mortandade de animais continuou, apesar de ocorrerem com intervalos de algumas semanas entre as fases de ataques. Nesse período, vários grupos de caça foram montados, tendo inclusive o senhor Pedro Paulo Escopel, Chefe de Polícia, participado da maioria deles. Nada foi encontrado. Parecia que a fera simplesmente desaparecia durante o dia, e, durante a noite, ninguém se animava a realizar buscas muito além dos limites das propriedades. Embora não admitissem, o medo tomava conta de todos e os impedia de se embrenharem no interior da floresta encoberta pela escuridão.

            Conhecendo a minha fama de hábil caçador, aqueles homens vieram até mim implorando para que eu os ajudasse a dar cabo do animal assassino. Mencionaram as histórias que circulavam pela região sobre as onças que matei e disseram que, se havia alguém capaz de pegar o bicho que tanto os atormentava, esse alguém era eu. Ofereceram-me dinheiro, juntas de boi e potros como recompensa. Sensibilizado, eu disse que iria, muito mais pela vontade de ajudar e pela curiosidade que o dito animal me despertava do que propriamente pelo pagamento. Contudo, apressei-me em dizer não achava possível que uma onça fosse a responsável pelos ataques, pois embora elas costumeiramente possam matar ovelhas e novilhos, não é comum que o façam com cavalos e gente. Nunca vou me esquecer da expressão de medo daqueles homens ao acenarem com suas cabeças, concordando comigo.

            Hospedei-me na fazenda São Luís, na qual chegamos na tarde seguinte, e sugeri que iniciássemos a caçada naquela mesma noite. Porém, o senhor José sugeriu que esperássemos para a noite posterior, onde teríamos lua cheia. Concordei, pois todos sabem que ao luar a visibilidade é muito melhor, a ponto de, por vezes, podermos até dispensar o uso de tochas e lampiões. Apenas no dia seguinte fui entender que o motivo da sugestão era outro. Percebi isso quando o senhor José ofereceu-me um revólver. Analisei-o com curiosidade e constatei espantado que ele estava carregado com balas feitas de prata. Meu anfitrião então explicou que essa arma estava em posse de seu pai na noite em que ele foi morto. Acabou contando-me também que alguns peões afirmavam ter visto um animal enorme e cinzento correndo sobre duas patas pela campina em certas noites em que ocorreram mortes de gado. Todos por ali já tinham ouvido os medonhos uivos da criatura pelas madrugadas e estavam convencidos de que se tratava de um lobisomem. Por isso a tal fera nunca era encontrada durante o dia, por mais que se vasculhasse a região com dezenas de homens e cão farejadores.

            Surpreso, respondi que não acreditava em assombração e coisas do tipo, mas se a ideia lhe agradava, eu levaria a arma comigo. Afinal, percebi que as balas estavam bem calibradas e, se fosse necessário, teriam a mesma serventia de quaisquer outras.

            Quando escureceu nos preparamos para sair e percebi com espanto que apenas José e Ademar me acompanhariam. Segundo eles, os peões estavam muito amedrontados e preferiam ser mandados embora a ter que vir conosco. Resignados, embrenhamo-nos na mata, que, naquela altura, já estava debaixo da luz esbranquiçada da lua cheia. Seguindo a lógica, andamos sempre na direção do rio, mas caminhamos por quase uma hora sem nada encontrar.

            Em certo momento, José anunciou que estávamos nos aproximando do local onde o pai dele havia sido morto, e foi ali que as coisas aconteceram. Antes que os meus companheiros se dessem conta, ouvi o som de folhas sendo pisadas e vi um vulto se movimentando no interior da mata, como se estivesse tentando nos cercar. Adverti aos outros, mas quase que instantaneamente a fera surgiu detrás das árvores e agarrou Ademar, arrastando-o para e escuridão. Eu e José corremos naquela direção, mas bastaram alguns momentos de hesitação, onde não atiramos por receio de ferir nosso companheiro, para que a besta o destroçasse com suas presas e garras afiadas. Era uma criatura horrível, enorme e furiosa como eu jamais vira. Ela largou o corpo despedaçado de Ademar e saltou na direção de José. Apavorado, o pobre homem nem mesmo tentou atirar. Jogou sua espingarda no chão e correu em desespero na direção do rio. Confesso que, diante de visão tão pavorosa, senti vontade de fazer o mesmo.

            Porém, para a sorte de todos, esse momento de fraqueza me dominou por apenas um curto instante. Ergui minha espingarda na direção da fera, que corria à minha direita, e atirei. Disparei quatro vezes e tenho certeza que acertei todos os tiros. A besta rugiu, cambaleou, chegou mesmo a cair, mas logo se levantou com um salto e partiu velozmente para cima de mim. Deus deve ter me iluminado nessa hora, pois fui muito rápido em largar a espingarda e sacar o revólver que trazia na cintura, carregado com as balas de prata que pertenceram ao pai de José. Esperei até a fera chegar bem perto, tão perto que eu pude sentir o seu bafo fedorento em meu rosto, e então atirei. A bala acertou a besta na cabeça, pouco acima do olho esquerdo. Rosnando, ela caiu centímetros ao meu lado, de forma que aproveitei para disparar mais três vezes contra suas costas. Foi então que presenciei a cena mais impressionante da minha vida: o corpo sem vida da besta se transformou em um homem!

            Nesse instante, José já havia ajuntado sua espingarda e se aproximava desconfiadamente. Foi ele quem primeiro reconheceu a fisionomia daquele cadáver corpulento e grisalho. Acredite-me, Senhor, pois eu estava lá e também vi com os meus próprios olhos: era o padre Rômulo! Todos ficaram espantados quando, cerca de um ano antes, o vigário desaparecera sem deixar vestígios ao atravessar a floresta. Depois de meses de buscas incessantes e sem resultados, ele foi finalmente dado como morto. Porém, ali estava o sacerdote aos nossos pés, nu, ensanguentado e dessa vez, realmente sem vida.

            Como esse triste destino foi se abater sobre o padre é algo que nunca ficamos sabendo, da mesma forma que também desconhecemos o local em que ele se escondia durante o dia, de forma a não ser encontrado pelos inúmeros grupos de busca que varreram a floresta durante tanto tempo. De comum acordo, José e eu decidimos enterrar o corpo do vigário ali mesmo, e manter essa pavorosa revelação no mais absoluto segredo. Apenas nós é que deveríamos carregar este terrível fardo.

            Depois daquela noite, as mortes na região da Campina Velha cessaram por completo, embora com o passar dos anos eu tenha ouvido relatos de outras semelhantes em diversas partes do nosso Rio Grande. A ideia de um dia encontrar outra criatura como aquela no meio da mata passou a me assustar de tal forma que abandonei definitivamente minhas atividades de caça, em uma atitude que gerou muita controvérsia e desconfiança entre todos que me conheciam. As pessoas não se conformavam com o fato de que o maior caçador que já haviam conhecido simplesmente passou a odiar a ideia de se embrenhar na floresta novamente, e sempre que o assunto vinha a tona, exigiam algum tipo de explicação de minha parte, algo que me recusei a fazer durante todo esse tempo, mas o faço agora, através deste manuscrito, ao saber que não me restam mais muitos dias de vida.

            Rogo para que dê crédito às minhas palavras e compreenda minha atitude, Prezado Senhor, e, se possível, inclua meu nome em suas orações noturnas. Espero ter, depois de morto, a paz que vem me faltando nesses últimos dez anos de minha vida.

            Que Deus o abençoe!

             Ass: Arlindo Pavan

17 de mai. de 2021

PASSIONAL

 

 

Por André Bozzetto Junior

 

            Mesmo contrariada, Vanessa seguia Roger por entre as lápides encardidas e mal conservadas de um antigo e decadente cemitério rural. A elegância de suas roupas caras e impecáveis contrastava com o visual desleixado do rapaz. Quem observasse a cena dissonante daquele casal andando ao anoitecer por um local tão lúgubre, poderia fazer diversas conjecturas, mas dificilmente arriscaria supor que se tratava de marido e mulher debatendo sobre as mazelas de um divórcio iminente.

            A verdade é que a moça já não suportava mais seu antigo cônjuge. Havia passado a odiar seu tom de voz macio e monótono, sua lerdeza de ação – que agora classificava como preguiça – e principalmente, sua total falta de disposição para assumir as responsabilidades de uma vida adulta alicerçada nos moldes que ela considerava ideais, ou seja, fundamentada no trabalho, mas regida pelo status social e pelo dinheiro, de preferência muito dinheiro. Foram essas razões que a levaram a observar Júlio – antigo amigo do casal – com outros olhos, a tal ponto de induzirem-na a aceitar o fato de que era muito mais coerente para com o estilo de vida que tanto almejava ser casada com um advogado promissor e oriundo de uma família tradicional do que com o João Ninguém com quem havia cometido o erro de trocar alianças. Como Júlio nunca foi muito eficiente em disfarçar a queda que sentia por Vanessa, bastou ela dar a devida abertura para que logo se construísse uma pequena aventura extraconjugal, que rapidamente converteu-se em um romance sério e regado por juras de amor sincero e, por fim, culminou em uma proposta de casamento, desde que, logicamente, ela se divorciasse de Roger primeiro.

            E era por isso que ela havia se sujeitado a aceitar o pedido mórbido e bizarro feito por Roger para que visitassem aquele tétrico cemitério, porque ele havia prometido que assinaria o divórcio depois desse último passeio. Logicamente, ela achou a ideia muito estranha e desagradável, mas sabia que o antigo companheiro era dado a esquisitices e excentricidades, de modo que aquela inicialmente parecia ser apenas mais uma. Além disso, depois de todas as cenas constrangedoras que ele havia feito quando soube que ela e Júlio pretendiam ficar juntos, era mais do que necessário aceitar qualquer proposta para não deixar escapar a única oportunidade em que ele finalmente afirmara consentir com a separação. Para Vanessa, essa situação ganhava um tom de urgência ainda maior quando ela levava em conta os vários meses que Roger passou viajando, supostamente em algum lugar da serra catarinense, e de onde ela temeu que ele nunca mais retornasse para assinar os papéis que lhe deixariam livre para concretizar seu tão almejado sonho de ascensão social.

            Porém, naquele momento já havia escurecido completamente e a perambulação por aquele cemitério ganhou contornos ainda mais arrepiantes quando eles chegaram diante de uma espécie de gruta onde havia um grande portão de ferro e Roger passou a insistir para que ela entrasse. Vanessa já estava consideravelmente irritada pela insistência do antigo companheiro em tentar denegrir de todas as maneiras possíveis o nome Júlio – buscando até mesmo antigas histórias do tempo de faculdade para desmerecê-lo – e aquela proposta sem pé e nem cabeça para que entrasse em uma gruta fedorenta e escura para que verificasse alguma suposta “surpresa” foi a gota d’água. Ela gritou, esperneou e disse que estava disposta a brigar pelo divórcio na justiça, mas que não entraria naquele buraco imundo de jeito nenhum. Foi nesse momento que Roger a agarrou pelo braço e praticamente a arremessou para o lado de dentro.

            Enfurecida e amedrontada, Vanessa deu mais ênfase aos seus escandalosos protestos, mas Roger advertiu-a de que de nada adiantaria seu chilique, pois o responsável pelo cemitério havia sido subornado por ele para não se intrometer em uma alegada sessão de sexo fetichista que fariam ali e, como o local era ermo e isolado, ninguém mais ouviria seus berros.

            A sensação de pânico que se apossava da moça aumentou ainda mais quando o facho de luz da lanterna trazida por Roger iluminou o corpo desacordado de Júlio caído em um canto da gruta. Temendo por sua vida e pela do amante desmaiado, Vanessa exigiu que Roger finalmente dissesse o que pretendia, e só então percebeu que a ameaça vinda do antigo cônjuge não era proveniente apenas de suas intenções sombrias e de suas atitudes rudes, mas sobretudo de algo no qual ele próprio estava se convertendo.

            Quando o rapaz vociferou que naquele momento ele, a esposa e o antigo amigo voltariam a ficar juntos, sua voz gutural realçou a fisionomia horrenda que convertia sua face em algo monstruoso, e então Vanessa compreendeu, ainda que tarde demais, o que o marido quis dizer quando afirmou que a temporada na serra catarinense havia sido transformadora. Depois disso, só lhe restou gritar. Primeiro de pavor, e em seguida de dor e agonia quando as mandíbulas bestiais do monstro rasgaram sua carne macia e macularam suas roupas finas e caras com o sangue viscoso que fluía de seu corpo dilacerado.