Por André Bozzetto Junior
A
maioria das casas existentes naquele bairro eram consideravelmente antigas. Em
especial, aquela para a qual Maria tinha acabado de se mudar havia sido
construída em meados da década de 1970, mas se encontrava em excelente estado
de conservação. Além disso, era grande, com três quartos, duas salas, uma ampla
cozinha e um belo quintal, onde haviam várias árvores frutíferas. E o mais
surpreendente: o aluguel custava uma ninharia. Apenas um terço a mais do que
ela costumava pagar por um apartamento minúsculo e desconfortável que ficava em
um prédio decadente de um bairro no extremo leste da cidade. Agora ela e a
filha adolescente poderiam viver de forma bem mais tranqüila e confortável. E
nos finais de semana, quando o marido caminhoneiro voltasse de suas viagens
habituais, eles poderiam até mesmo fazer churrasco no quintal.
–
Não entendo como podem existir tantas casas vazias nessa rua. – disse Maria –
Elas são ótimas e o aluguel é bastante em conta.
–
O problema é que elas são antigas. – respondeu Paulo, o agente imobiliário – E
a senhora sabe como são as pessoas hoje em dia: querem tudo novo, tudo moderno.
Gostam tanto das frescuras da moda que desvalorizam as coisas boas do passado,
como as casas dessa rua.
–
Pois para mim elas são ótimas! – retrucou Maria, com um sorriso satisfeito nos
lábios.
–
Eu também adorei! – complementou Magda, a filha.
–
Pois então aproveitem! – disse Paulo, apertando a mão de Maria – E se
precisarem de qualquer coisa, é só ligar para a imobiliária. Aliás, eu moro a
três quarteirões daqui. Faço questão de vir sempre que for preciso.
Em
seguida, o agente imobiliário se despediu e foi saindo, mas não sem antes dar
uma boa analisada em Magda, observando-a dos pés a cabeça. Sua atitude foi um
tanto indiscreta e a garota, percebendo a malícia no olhar do homem,
enrubesceu. Apenas Maria não percebeu nada, de tão maravilhada que estava
observando cada detalhe da casa. “Espere até o final de semana, quando o seu
pai chegar!”, dizia ela. “Ele vai adorar essa casa!”.
Por
volta das 23 horas, Magda já estava na cama, pois na manhã seguinte teria que
ir para a escola. Embora tivesse que levantar ainda mais cedo do que a filha
para ir trabalhar, Maria permanecia de pé, curtindo a primeira noite na nova
casa. Ela havia acabado de colocar um bule com água para aquecer no fogão e
estava procurando a camomila para o seu chá, quando um grito de terror ecoou no
interior da residência. Maria reconheceu de imediato a voz da filha, e correu
estabanadamente até o quarto dela. Quando abriu a porta, teve a visão mais
terrificante de sua vida.
Magda
se encontrava sentada na cama, gritando e chorando desesperadamente, enquanto
olhava na direção da janela, através da qual uma criatura enorme e horrenda
tentava entrar. O monstro já havia removido a veneziana de madeira, quebrado um
vidro da parte interna da janela e, com sua mão peluda e robusta, onde se
destacavam as garras afiadas, ele tentava remover o trinco que o mantinha do
lado de fora. Maria logo percebeu que seria apenas uma questão de tempo até a
criatura conseguir entrar, pois mesmo que ela não conseguisse abrir o trinco,
não teria maiores dificuldades para despedaçar a janela com quatro ou cinco
golpes.
Apavorada,
a mulher puxou a filha pela mão e correu de volta para a cozinha. Seu primeiro
impulso foi de sair gritando por socorro na rua, mas logo ela se deu conta de
que não havia vizinhos próximos e que certamente o monstro as alcançaria antes
que pudessem avançar algumas dezenas de metros. Pensou em pegar uma faca para
tentar algum tipo de defesa desesperada, mas então seus olhos encontraram o
bule cheio de água fervente sobre o fogão. Ela estava disposta a qualquer coisa
para salvar sua vida e principalmente a da filha, de modo que não hesitou: pegou
o bule e se dirigiu de volta ao quarto de Magda.
Quando
atravessou a porta, Maria viu que o monstro já tinha conseguido abrir também a
parte interna da janela, de forma que já estava com a cabeça, os braços e
metade do corpo para dentro do quarto. Ele olhou para a mulher com seus enormes
olhos vermelhos e reluzentes e uma macabra excitação pareceu transparecer em
sua face horrenda. Nesse momento, Maria se aproximou corajosamente e, com um
único movimento, arremessou toda a água fervente de encontro à face da
criatura. Urrando de dor e ódio, o monstro retrocedeu desengonçadamente e saiu
correndo em busca do abrigo acolhedor das sombras da noite. Sob a luz da lua
cheia, Maria pode ver que, embora as características corporais da criatura
lembrassem algo similar a um lobo de cerca de dois metros de altura, ela corria
apoiada apenas nas pernas traseiras, com movimentos muito semelhantes aos de um
ser humano.
Na
manhã seguinte, Maria não foi trabalhar e Magda não foi para a escola. Só
saíram de dentro de casa para ir até o telefone público mais próximo. Elas
sabiam que seria inútil relatar o ocorrido para a polícia ou para qualquer
outra pessoa. Certamente, ninguém acreditaria em histórias de lobisomens. Assim,
ligaram apenas para a imobiliária, com a intenção de pedir para Paulo devolver
o dinheiro do aluguel que havia sido pago adiantado, pois pretendiam ir embora
o quanto antes pudessem. Contudo, a secretária da imobiliária disse que Paulo
não havia ido trabalhar, apenas ligara dizendo que iria ao médico. Porém, a
funcionária se prontificou a entrar em contato com o agente imobiliário e pedir
para que ele fosse até a casa de Maria tão logo possível. Sem outra
alternativa, só lhes restou concordar.
Maria
e Magda passaram o dia apreensivas, intercalando olhares para o relógio e para
a rua, esperando pela chegada de Paulo e pela subsequente oportunidade de ir
embora daquela casa e daquele bairro, que já não lhes despertavam nenhum outro
sentimento além do medo. Quando começou a entardecer, as duas se deram conta de
que talvez o agente imobiliário não viesse mais e, consequentemente, elas
teriam de passar mais uma noite na casa, pois não tinham outro lugar para ir.
Rapidamente, começaram então a improvisar formas de reforçar as portas e
janelas, para o caso de o monstro decidir voltar.
Já
havia escurecido completamente quando alguém bateu na porta. Apreensiva, Maria
perguntou quem era antes mesmo de se aproximar da maçaneta.
–
Sou eu, Paulo. – respondeu a voz vinda do lado de fora.
Tomada
pela esperança, Maria destrancou rapidamente a porta e abriu-a para receber o
agente imobiliário. Porém, a visão que teve deixou-a tão espantada que, instintivamente
tentou fechá-la novamente. Mas não foi possível. Paulo escorou a porta com uma
das mãos e com a outra deu um safanão em Maria, fazendo-a cambalear para
dentro. Em seguida, ele entrou e girou a chave detrás de si.
Paulo
estava com o rosto quase que completamente coberto por ataduras, permanecendo
de fora apenas os olhos e a boca. Pelas frestas entre as faixas, Maria e Magda
puderam ver que a pele do rosto do homem estava desfigurada por queimaduras.
–
Sua vadia desgraçada! – gritou Paulo, com um tom de voz cavernoso e
amedrontador – Veja o que você fez com o meu rosto!
O
homem então começou a remover as ataduras de sua cabeça, e a revelação do que
havia por detrás delas fez com que Maria e Magda ficassem paralisadas de horror
e repulsa. Além da pele queimada e purulenta, a face de Paulo apresentação
outras anomalias, como o nariz retorcido para frente, os ossos das maçãs do
rosto dilatados e espessos tufos de pelos negros que emergiam de seus poros disformes.
Ele estava se transformando em um monstro.
–
Eu queria apenas a sua filha! – vociferou aquele horrendo ser que já não se
parecia mais com Paulo – Mas agora terei prazer em comer você também!
Na
sequência, as roupas que o homem vestia se rasgaram e desapareceram daquele
corpo junto com os últimos vestígios de humanidade. Coberto por uma pelagem
negra e opaca, a criatura se aproximou das duas apavoradas mulheres escancarando
sua enorme bocarra repleta de presas longas e afiadas e emitindo um urro
ensurdecedor. Encurraladas, as duas se agacharam junto à parede, cobrindo os
olhos com as mãos e esperando pelo pior. Ironicamente, o último pensamento
lúcido que passou pela mente de Maria foi a compreensão de que não eram as
casas antigas que afastavam os moradores daquela rua, mas sim aquela coisa que
estava diante dela, igualmente antiga, mas infinitamente pior.
Durante
aquela noite, gritos de dor e agonia ecoaram pela rua, acompanhados de urros
monstruosos que denotavam ódio e satisfação. Porém, não havia vizinhos próximos
para escutá-los e os que moravam mais distantes não ouviram nada. Ou, se
ouviram, por medo fingiram não ouvir.