Por Giulia Moon
Estela
lambeu os lábios. Ainda estava claro, mas uma lua cheia afogueada já surgia no
céu. Estava tensa. Queria uivar. Queria agir como uma loba. Como uma das tantas
lobas que vagavam nas ruas, nos campos, na imensidão do mundo. Todas assim,
resfolegando de ansiedade antes do anoitecer.
Tudo
começara depois da primeira transa após os trinta anos. Era um cara lindo, bem mais
novo que ela, tinha 0% de gordura no corpo e o mesmo percentual de QI. Na época
ela não ligava pra esses detalhes, só sabia que dava gosto apalpar aquele
corpinho rijo, firme, viçoso... Aquele fedor de suor, dos hormônios e do relaxo
da juventude, que Estela aspirava com vontade, cheia de tesão.
Se
dependesse dela, desfilaria todo dia como uma verdadeira alfa no covil dos shoppings,
dos restaurantes, das praias, do agito, com o seu tenro amante a tiracolo. As
outras lobas salivavam, esticando e inflando os peitos dentro de suas blusas,
camisetas e vestidinhos, todas de olho no garotão da Estela... Que as vigiava
com o canto dos olhos, sem perder nenhum movimento das rivais. Ah, nas lobas, não
dá pra confiar! Mulheres de todo o tipo, fêmeas chiques dos Jardins, teens
sardentas e bronzeadas, intelectuais de cabelinho preso, garçonetes sexualmente
contidas em seus uniformes sóbrios. Todas morrendo de inveja de Estela. Bem, se
isso também não era um tesão, o que era?
Isso
foi há tempos atrás. As coisas mudam, sabem como é. No caso, o que mudou foi a disposição
física de Estela, agora um dínamo de energia e excitação. O problema era a
vontade quase incontrolável de uivar, pular e correr por aí, de preferência
nua, num local selvagem. Ok, na falta de uma paisagem mais exuberante, podia ser
ali mesmo, no asfalto estreito das ruinhas da Vila Madalena. Mas agora era hora
de esperar, ter paciência, ficar ali, sentada no barzinho com as pernas
musculosas cruzadas, mal-acomodadas sob uma mesinha pequena demais pro seu corpão
moldado em academia.
Pois é. Paciência...
Estela
franziu o nariz aquilino, farejando o ar. Nada. Contrariada, bebericou o chope.
Soprou a fumaça da última tragada do cigarro e livrou-se do toco politicamente
incorreto, que descreveu um semicírculo gracioso no ar, diretamente dos seus
dedos para a sarjeta.
Lá
do fundo do bar, da área de não fumantes, veio um olhar de reprovação. Um sujeito
de gravata olhava feio pra Estela e pro cinzeiro próximo, onde os restos de
cigarros malcriados deveriam ser depositados. Ela rosnou baixinho. O homem
tinha uns trinta anos, era posudo, com cara de bem-sucedido. A loba mordiscou
os dedos de unhas longas pintadas de bege, mais claras que a sua pele. Sim,
sim.
Afinal as coisas estavam
acontecendo. Abriu a boca, mostrando os dentes alvos e deixando a boca carnuda
falar sem palavras. Leitura labial que o estranho soube fazer muito bem.
Descruzou
as pernas. O vestido solto, cor de chocolate, era quase continuação da sua pele
morena. O homem engoliu o último gole do seu uísque e seus olhos percorreram as
pernas da loba, indo e vindo, indo e vindo...
Estela
quase podia vê-lo arfando com a língua de fora, examinando a situação como um macho
desconfiado. Perdera aquele ar certinho e arrogante em algum ponto entre a
boca, o peito, as coxas e o cano das botas de camurça de salto altíssimo de
Estela. Ficaram assim, num diálogo silencioso e cheio de malícia, durante alguns
minutos.
De
repente, ele dobrou o jornal americano que fingia ler. Olhou a conta e jogou o
dinheiro, displicente, sobre a mesa. Sinalizou para o garçom, apanhou o paletó,
o jornal, e veio andando na direção de Estela. Uau, era um ataque frontal? Mas
o sujeito passou por ela. Ao passar, abaixou-se para pegar o toco do cigarro no
chão. Ah, era esse o plano? Ia jogar a guimba no lixo pra dar uma lição sutil
na perua maleducada...
Mas lobas
não gostam de sutilezas. Não esta loba. Com um movimento rápido, Estela fincou
o salto da bota no meio da mão larga e bem manicurada do homem. Ele não falou.
Apenas olhou, atônito, lá debaixo de sua pose vexatória, para a loba de um
metro e oitenta que o fitava, a boca enorme aberta num sorriso malvado, a
língua vermelha e sem-vergonha passeando pra lá e pra cá nos lábios de
caramelo.
Ela não
falou também. Apenas continuou a afundar ainda mais o salto cruel na maciez da
mão espalmada. Com vontade. Com volúpia. Era sangue o que queria. E o olhar do macho,
mesmo na dor, mesmo com vontade de meter a mão naquela mulher, insistia em percorrer
os caminhos meio obscuros, meio reveladores, por debaixo da saia cor de
chocolate, dando maior bandeira do seu tesão.
Então,
sob os olhares curiosos, ainda com a mão sob o jugo do salto agulha torturante,
o homem ajoelhado aproximou os lábios da bota. E a beijou.
A bota se afastou e deixou livre
a mão vencida. Ele pegou no braço dela. E, juntos, deixaram o bar. O jornal
ficou lá, esquecido, um montão de lixo na sarjeta, junto à pequena guimba
manchada de batom.
Lua
cheia plena, no alto. Estela escovava os cabelos molhados depois do banho relaxante.
Olhou-se no espelho do quarto, nua, a pele reluzindo de frescor. Sentia-se
gostosa. Grande. Poderosa. Era sempre assim, depois de uma boa caçada. Fora
depois dos trinta que começara a caçar. Lembrava-se muito bem. O garotão bonito
viera com o papo de dar um tempo, enquanto armava pra cima dela com uma
adolescente cheia de celulite. Pra cima dela, vejam só... Não gostava tanto
assim dele, mas uma mulher desprezada sempre quer sangue. E às vezes vira loba.
Naquela noite, sob a luz da lua cheia, transara com o jovem amante infiel.
Uma
transa cheia de raiva, de tesão e de veneno. E, quer saber? Foi a melhor transa
que tiveram em toda a relação. Mas isso não fora nada, comparado com o que se
seguiu. Só podia ser feitiço. E poderoso. Nunca soube por que e nem como, mas o
desejo que gritara em silêncio durante o sexo se concretizou.
O
garotão esqueceu a outra, escolheu ficar com Estela. O mesmo se deu com todos
os demais, que se transformavam de imediato em fiéis companheiros. Um a cada
mês, sempre na lua cheia. Doze por ano. Sessenta e quatro até agora. Amantes
belos, fogosos, insaciáveis, com os quais só podia fazer sexo uma única noite. Todos
aqueles machos deliciosos! O problema era o dia seguinte. Estela tinha que
enxotá-los. Eles uivavam e ganiam, mas, no final, iam embora, os rabos entre as
pernas, o olhar magoado. Ah, o que podia fazer? Não tinha espaço em casa para um
canil. E nem dinheiro para comprar tanta ração...
Mas
o garotão, ela fez questão de manter. Caminha todos os dias com ele. Leva-o ao
veterinário, mantém todas as vacinas em dia. Comprara até
umas roupinhas de frio no petshop pra ele, que, por sinal, parece bem feliz com
a sua nova vida.
Pois
é, hoje era lua cheia mais uma vez. E havia mais um macho no seu quintal. Um tipo
arrogante, cheio de pose. O garotão não gostou muito da concorrência, mas
acabou se conformando. Afinal, mesmo com o seu QI pequenininho, sabia, pela
experiência, que logo o novato seria enxotado como os outros. Pelo menos ele
achava que sim. Ela achava que talvez.
Estela
pingou duas gotas de perfume no seu pescoço. Às vezes sentia falta de um macho
fixo. Alguém diferente, com quem atravessaria a noite e alcançaria o dia sem se
perder nesse labirinto confuso de desejos e instintos desenfreados. Não para
desfilar entre as outras lobas, mas para compartilhar algo maior. Mais
profundo. Mas lobas não entendem de coisas profundas. Quem, afinal, entende?
Estela
abriu a janela e olhou para o céu, deixando o vento pentear os seus cabelos. Viu
as estrelas, ah, tantas estrelas! Um longo uivo começou a brotar de sua
garganta. Do quintal, os uivos dos dois machos juntaram-se ao seu.
E
a noite, por um breve instante, foi deles. Só deles.
* Conto publicado anteriormente no
FicZine nº 05, de dezembro de 2006.