PARTE I
Vale Dos Pinhais, 16 de Outubro de 1989
18h 50min
Sidnei andava realmente feliz. Desde que o Hotel dos Pinhais havia sido inaugurado, há cerca de um ano, ele trocara a modesta vida de carpinteiro pela função de chefe do setor de Serviços Gerais do hotel, o que lhe conferia uma renda mensal muito mais significativa, além de um status que ele acreditava ser “mais nobre”. Agora, já podia satisfazer alguns dos desejos consumistas da filha, e o que era melhor, a sua esposa já não passava mais o dia a xingá-lo e a reclamar da vida. Mas naquele final de tarde, algo estava para mudar.
Após uma rápida passagem pela cidade, onde comprou algumas ferramentas, Sidnei dirigia sua caminhonete tranquilamente pela estrada de terra que conduzia ao hotel campestre, quando avistou na beira do caminho uma figura curiosa, que logo identificou como sendo Adão Fonseca, mais conhecido como “O Palhaço Gargalhada”. Ficou intrigado ao vê-lo devidamente caracterizado, pois ele só costumava se fantasiar no hotel, minutos antes das apresentações. Contudo, pensou ele, o Palhaço estava fazendo tanto sucesso em meio à criançada, que Adão decidiu usufruir um pouco mais da sua fama, saindo de casa já fantasiado.
Quando Sidnei reduziu a velocidade, no intuito de dar uma carona ao insólito personagem, percebeu que o Palhaço levou a mão ao seu “saco de surpresas”, ao mesmo tempo em que esboçou um sorriso estranho. “Lá vem alguma sacanagem!” – pensou o motorista, divertidamente. Com isso, tamanha foi a sua surpresa ao perceber que na mão do Palhaço, ao invés de algum brinquedo idiota, o que surgiu foi um reluzente revólver.
Antes que Sidnei pudesse esboçar qualquer reação, o Palhaço disparou. O tiro estilhaçou o para-brisa da caminhonete, fazendo com que o motorista perdesse o controle do veículo e capotasse em um longo declive, à margem da estrada.
Depois que o silêncio voltou a dominar a paisagem, o Palhaço tornou a guardar o revólver e recomeçou a caminhar calmamente em direção ao hotel. Afinal, estava anoitecendo, e ele já estava próximo.
19h 05min
Fazia calor naquele inicio de noite. Fabiano enxugava o suor da testa com um lenço, ao mesmo tempo em que esbravejava em voz baixa pelo desconforto que o terno lhe causava. Por que todos os seguranças do hotel tinham que usar aqueles ternos de “mafioso italiano”? – Perguntava-se. De qualquer forma, era um sofrimento tolerável, afinal, o salário de segurança era muito melhor do que aquele que recebia na enfadonha oficina mecânica onde trabalhava antes. Além disso, não precisava fazer absolutamente nada, apenas ficar circulando pelos arredores do hotel, olhando o dia inteiro para as bundas das belas hóspedes que costumavam frequentar o local.
No íntimo, Fabiano achava meio idiota a ideia de haver tantos seguranças contratados para trabalhar ali. Claro que se tratava de um hotel de luxo, que sempre recebia como hóspedes pessoas abastadas, vindas das grandes cidades, mas em Vale Dos Pinhais a criminalidade praticamente não existia. Ele já estava com vinte e dois anos e não se lembrava de ter ouvido falar de algum assassinato ocorrido na cidade. Roubo, só de galinhas e bicicletas. Na verdade, desde que começou a trabalhar no hotel, o único acontecimento que quebrou a monotonia, foi a bebedeira que um hóspede fez no restaurante, e obrigou-o a retirá-lo do recinto antes que completasse o striptease que estava promovendo. Contudo, Fabiano estava satisfeito com o fato daquele investidor alemão ter decidido construir o hotel em sua cidade, pois assim várias pessoas, a exemplo dele, que viviam de biscates ou como empregados à custa de salários sofríveis, puderam melhorar suas condições. Além disso, o hotel ainda acabou por impulsionar o comércio e as atividades turísticas do município.
O rapaz caminhava pelo estacionamento defronte ao hotel, quando viu aproximar-se o Palhaço Gargalhada. Esse hotel é realmente incrível! – pensou – Tem até um palhaço particular para entreter os filhos dos ricaços!
Quando se aproximou da colorida figura, na expectativa de ouvir uma nova piada (pois o Palhaço sempre tinha uma na ponta da língua), Fabiano foi surpreendido pelo cano negro da arma apontada para a sua cabeça. Ao estrondo do tiro, o corpo do jovem segurança rolou sem vida pelo chão, deixando fluir uma enorme quantidade de sangue do crânio estilhaçado. O Palhaço dirigiu-se para o hall de entrada do hotel. Na face, um olhar doentio, sublinhado por um sorriso de satisfação.
19h 08min
Atrás do balcão da recepção, Alberto Matias levou um tremendo susto ao ouvir o estrondo vindo do estacionamento. Olhou a sua volta, e no hall viu apenas um casal de hóspedes, também com caras assustadas. Fitou a escada que levava ao segundo andar, e avistou um segurança descendo rapidamente, com olhar intrigado. A certeza de que algo não estava bem, veio no instante em que viu o Palhaço Gargalhado entrando pela porta da frente, afinal, não haveria apresentação naquela noite.
– O que está acontecendo? – Conseguiu perguntar o segurança, apenas um segundo antes de receber um tiro no peito.
O tal segurança era grande e forte, e apesar de gravemente ferido, conseguiu se manter em pé, e até tentou sacar a arma que trazia escondida sob o terno. Mas antes disso, o Palhaço Gargalhada aproximou-se, encostou o cano do revólver na cabeça do sujeito e disparou. Pedaços de crânio, cérebro e miolos voaram pelo hall.
O casal de hóspedes, incapazes de fugir, gritava desesperadamente, paralisado de pavor. Assim, foram presas fáceis para o Palhaço. A mulher recebeu um disparo entre os olhos, e morreu na hora. O homem levou um tiro no pescoço, e ficou caído, estrebuchando e expelindo jatos de sangue. Morreu minutos depois, na ambulância, a caminho do hospital.
Alberto Matias assistiu a tudo, horrorizado. Tentou ligar para a polícia, mas estava tão nervoso que acabou derrubando o telefone ao chão. O Palhaço começou a andar em sua direção. Gritar por socorro foi à única alternativa encontrada pelo recepcionista quando viu a arma apontada para si. Quando o Palhaço puxou o gatilho, ao invés do estrondo assustador, ouviu-se apenas um estalido metálico. A arma estava descarregada. Matias tentou correr, mas o assassino bloqueou-lhe a passagem. O Palhaço Gargalhada largou o revolver ao chão com desprezo, e tirou, não se sabe de onde, uma enorme faca de cozinha. Sem outra alternativa, o recepcionista passou a implorar:
– Por favor, Adão ... sempre fomos amigos! – suplicava, entre lágrimas. O Palhaço apenas riu, e desferiu-lhe uma violenta facada no abdome. E depois outra, e mais outra. Dizem os vizinhos que era possível se ouvir os gritos a centenas de metros de distância.
Atraídos pela barulheira, vários hóspedes e funcionários correram para o hall, a tempo de assistirem, terrificados, ao massacre do recepcionista. Em meio aos curiosos, chegaram também dois seguranças.
– Largue essa faca! Largue essa faca, seu filho da puta! – Gritava um dos seguranças, enquanto ele e o colega apontavam suas armas ao assassino.
O Palhaço largou o corpo já sem vida do recepcionista e precipitou-se em direção às pessoas. Sua face maquiada tinha uma expressão maligna, aterradora.
Então os seguranças dispararam contra o agressor. Estavam tão apavorados que só pararam de atirar quando a munição de seus revólveres acabou. O corpo crivado de balas do Palhaço Gargalhada caiu pesadamente ao chão, dentro de uma grande possa formada pelo seu próprio sangue.
Em meio ao tumulto e aos gritos histéricos, podia-se ouvir ao longe as sirenes se aproximando.
Continua na próxima semana...
O Caso do Palhaço é um livro escrito por André Bozzetto Jr em 1999 que acabou não sendo publicado no época e, posteriormente, seus originais foram considerados perdidos, fazendo com que permanecesse inédito por mais de 20 anos. Recentemente redescoberta, a obra está sendo agora disponibilizada gratuitamente na forma de capítulos semanais no blog Relatos Noturnos.