2 de out. de 2022

DILLODOKERS - 4º e 5º Ciclos

 

4º Ciclo

 

Por André Bozzetto Jr

 

              Sabe aquelas noites em que você tem um sonho tão assustadoramente real que quando acorda está ofegante, com o coração acelerado e ao mesmo tempo grato por ter despertado? Foi assim que me senti naquele momento. A experiência mais assustadora que já tinha tido na vida. Demorei alguns minutos para me situar. A tontura estava bem forte, mas diminuiu um pouco quando comecei a respirar fundo e tentar me acalmar. Logo me lembrei de tudo e entendi onde estava.

              Na entrada do Parque de Eventos, tive a impressão de que, além do pessoal de fora, 90% da cidade já estava ali. Adultos andando com crianças chorando e esperneando para lá e para cá, jovens bebendo e dando risada, velhos observando tudo com olhos arregalados e fofocando. Tudo normal.

              Estava acontecendo de novo. Mas, por algum motivo que nunca conseguiria explicar, dessa vez havia recuado um pouco mais no tempo. Era inútil ficar tentando entender o que estava acontecendo. No fim, pouca diferença faria. O importante era agir. Calculei que deveria faltar uns 20 ou talvez 30 minutos até o filme psicótico do Vítor Venganno começar a ser exibido. Isso me dava uma importante vantagem que não tinha tido nas outras vezes. Pensei em ir até a sala de controle do palco principal e quebrar tudo, mas logo desisti da ideia, pois alguém poderia dar um jeito de acabar exibindo o filme mais tarde, de outra forma. Também não tinha certeza se os babacas dos irmãos Venganno não poderiam ter alguma outra carta na manga para fazer o caos iniciar mesmo sem o vídeo. Então, o mais lógico a fazer era ir direto ao centro da porra toda. Sem perder nem mais um segundo, saí correndo em direção aos barracões abandonados na parte antiga do parque.

              No caminho, procurava não olhar para ninguém especificamente, para não correr o risco de acabar me distraindo. Sabia que não adiantaria pedir ajuda a outras pessoas, pois para isso precisaria tentar convencê-las de tudo que eu dissesse, o que seria, além de quase impossível, também demorado. Não havia tempo a perder, por isso eu só corria, trombando e empurrando quem estivesse pela frente.

              – Meu Deus! Que grosso! – reclamou uma guria, quando esbarrei nela.

              – Deve estar maconhado! – resmungou uma velha, quando atravessei cambaleando no meio do grupinho onde ela e outras amigas fofocavam.

              Cheguei a me perguntar quem eu encontraria lá em cima dessa vez. Vítor? Walter? Ambos? Não importava. Eu quebraria a cara de qualquer um sem pensar duas vezes para impedir que o pandemônio começasse. Eu poderia até matar aqueles putos se fosse preciso. Pode apostar que sim.

              Não sei se foi por desespero ou pela esperança de que dessa vez pudesse dar certo, mas quando percebi já tinha subido o morro e estava diante dos barracões abandonados. Enquanto recuperava o fôlego, observei que novamente, a paisagem estava diferente. Havia uma cerca no limite do parque e pendurada nela uma placa escrito “Propriedade Particular – Entrada Proibida”. Escalei os arames sem maiores dificuldades e pulei para o outro lado. Notei que o primeiro dos barracões também tinha diferenças. A porta e as duas janelas da frente tinham sido substituídas por outras mais reforçadas e estavam bem trancadas. Porém, quando contornei pela direita, vi que a janela lateral – quase escondida pelas árvores – continuava a mesma. Então, era só fazer como da vez anterior. Corri e me joguei com o ombro de encontro aos tampos de madeira. Eles se abriram com um estrondo e mergulhei de cabeça  para o lado de dentro.

              Me levantei rapidamente e percebi que o interior também havia mudado. Continuava tendo ferramentas, tábuas e tralhas diversas amontoadas junto às paredes, mas no centro, ao invés daquela maluquice improvisada do Walter Venganno havia uma máquina completamente diferente. Era feita de algum tipo de metal negro – ou pelo menos parecia metal – e tinha um formato que me lembrou uma locomotiva de um trem antigo, daqueles tipo “Maria Fumaça”, só que sem rodas ou aberturas. Na verdade, essa descrição é bem ruim, porque era algo claramente moderno e ultratecnológico, só que não conseguia pensar em uma comparação melhor. Em uma das laterais da coisa havia uma grande tela plana onde piscavam centenas de botões coloridos, figuras geométricas complicadas e símbolos desconhecidos. Ao lado do monitor, segurando um bloco de anotações nas mãos e me olhando com expressão séria estava um cara. Só que, para a minha surpresa, não era nenhum dos irmãos Venganno. Era o Sabidão.

              Ele estava com as roupas encardidas e amassadas e tinha sangue ressecado grudado na testa e ao redor do nariz. Mas, o que mais me impressionou foi o fato de ele estar preso pelo tornozelo direito a uma corrente de mais ou menos uns cinco metros de comprimento, afixada em um presilha de ferro junto ao chão.

              – Você chegou mais cedo dessa vez... – disse o Sabidão, voltando a olhar para as suas anotações, não parecendo surpreso com a minha presença – Espero que seja um bom sinal.

              – Como assim?! O que você está fazendo aqui?! Que porra está acontecendo?! – questionei, sem entender nada.

              – Lá vamos nós. – suspirou ele – As mesmas perguntas de sempre. Tudo de novo.

              Permaneci alguns instantes em silêncio, tentando processar as novidades. Senti a tontura começando a aumentar de novo. Devo ter ficado com uma tremenda cara de otário, porque o Sabidão simplesmente recomeçou a falar, como alguém que está explicando algo a uma criança, sem muita paciência.

              – Vamos lá. Vou dar um resumo da situação. – disse ele, aparentando estar entediado – Aquele neurótico do Walter Venganno trouxe essa máquina, não sei de onde. Ele e o irmão maconheiro, o Vítor, começaram a fazer experimentos e descobriram que essa coisa pode abrir portais entre diferentes pontos do espaço-tempo e até entre dimensões paralelas – o que, para fins práticos, dá quase na mesma – só que eles não sabiam usar direito. É um negócio extremamente complexo e, para falar a verdade, eu ainda não sei exatamente o que eles teriam feito caso soubessem operar o equipamento de forma eficiente. O fato é que, num desses testes, eles tiveram acesso a outro plano da realidade, onde existem seres que eles chamaram de Dillodokers e – pelo que pude entender – são personificações de sentimentos negativos que todo mundo sente em alguma medida, o que mostra que há, ainda que de forma limitada, inconsciente e imperceptível – contato entre essas várias dimensões, ou pelo menos entre algumas. Só que essas criaturas são, digamos assim, “negatividade pura” e quanto mais acesso elas tiverem à nossa dimensão, mais controle podem exercer sobre nossas mentes e isso as fortalece porque elas se alimentam da nossa energia psíquica. Em contrapartida, a gente fica cada vez mais louco e, no fim, você sabe como isso termina.

              – E aqueles babacas acreditaram que poderiam controlar esses seres e usá-los para se vingar de todo mundo, porque os “coitadinhos” sofriam bullying na escola. Bem coisa de filho da puta mesmo. – disse eu, já sem muita paciência – Mas isso é mais ou menos o que eu já sabia. Quero ouvir o resto.

              – Eles fizeram aquela merda de filme e deixaram o plano todo organizado para ser posto em prática hoje, já que a Festa da Mandioca estaria lotada. – continuou o Sabidão – Só que antes disso eles tiveram uma ideia mais ousada: tentar abrir um portal para que os Dillodokers atravessassem fisicamente para esta realidade ao invés de apenas agirem sobre nossas mentes.

              – Terror pouco é bobagem. – falei, sem poupar na ironia.

              – Exato. Mas aí, quando eles fizeram um teste, algo deu errado e, ao invés de materializar algum dos Dillodokers, foram eles que desapareceram, decerto tragados para alguma outra dimensão.

              – Essa foi boa! – disse eu, sem conter uma risada.

              – Pois é... – continuou o Sabidão – E antes que você me pergunte como eu sei de tudo isso, é só olhar para aquela câmera no tripé ali atrás. Eles filmavam todos os experimentos e o Walter mantinha diários detalhados com o avanço das pesquisas.

              – Muito bem... – concordei, observando a câmera poucos metros adiante – E como você se envolveu nessa história?

              – Agora a coisa começa a ficar ainda mais bizarra. – disse ele – Lembra da mãe do Walter e do Vítor?

              – Sim. – respondi – Verônica, uma mulher meio histérica. Fazia escândalos na escola quando acontecia qualquer coisinha com os filhos.

              – Exatamente. – concordou ele – Pelo visto, nesse caso, a loucura é de família. Mas, o fato é que ela sabia que os filhos estavam fazendo algo neste local e, quando eles não voltaram para casa, veio até aqui procurá-los. Obviamente, não os encontrou, mas viu a câmera ligada e assistiu a filmagem onde os dois desaparecem após acionarem a máquina. Então me procurou, desesperada, pedindo para eu vir até aqui analisar a situação e ver se podia trazê-los de volta. Achei a história muito doida, mas decidi vir, por pura curiosidade. Para o meu espanto, o negócio era real mesmo. Passei muitas e muitas horas lendo os diários, assistindo as filmagens e analisando a máquina e, por fim, decidi que seria perigoso demais acionar novamente uma coisa tão poderosa e sobre a qual se sabia tão pouco. Quando disse para a Verônica que o melhor era não fazer nada – ou que pelo menos que eu não faria nada – ela surtou, sacou um revólver da bolsa e falou que só me deixaria ir embora quando trouxesse os filhos dela de volta. Então me trancou no banheiro lá no fundo e saiu. Voltou um tempo depois trazendo água, comida e essa corrente. Exigiu que eu me acorrentasse e ficasse trabalhando em uma forma de fazer a dupla de otários reaparecer. Como você pode perceber pela minha aparência, sempre que eu tento fugir acabo me dando mal.

              – Que loucura! – eu disse, sentindo a vertigem piorando mais ainda – E onde ela está agora?

              – Foi buscar mais comida, mas logo vai voltar.

              – E o que vamos fazer?! – perguntei, ansioso.

              – Esse é o problema! – respondeu o Sabidão, exaltado – Nós já fizemos de tudo! Você não percebe, mas nós estamos presos em algum tipo de looping temporal, onde essa merda de dia fica se repetindo de  novo, de novo e de novo! Teve uma vez onde eu acabei acionando a máquina, só que quem apareceu não foi nenhum dos babacas dos irmãos Venganno e sim um dos Dillodokers! Com certeza ele me matou, mas, ao invés de eu ir para o céu, para o inferno ou algo assim, reapareci aqui e começou tudo de novo. Mudei a configuração da máquina, acionei novamente e surgiu um Dillodoker diferente. Morri, e o ciclo reiniciou de novo. Então você começou a aparecer. Tentou me salvar, mas quando chegamos ao centro do parque, fomos mortos pela multidão enlouquecida. Outra vez você tentou destruir a máquina, mas provocou um incêndio e morremos queimados. Tentou também argumentar com a velha louca, mas ela pirou de vez e atirou em nós dois. Com pequenas variações, esse dia sempre se repete e a gente sempre se dá mal. E começa tudo de novo.

              A vertigem estava tão forte que precisei sentar no chão, apoiando a cabeça nas mãos. A sensação de  desespero era crescente.

              – Sabe o que é mais estranho...? – continuou o Sabidão – Eu cheguei a acreditar que esse looping temporal pudesse ter sido criado como uma anomalia no espaço-tempo, quando eu acionei a máquina, ou talvez ainda antes, durante um dos experimentos dos irmãos Venganno, mas, agora fico pensando que talvez essa seja a própria natureza da realidade. Uma espécie de simulacro existencial que se repete, por centenas ou milhares de vezes até esgotar todas as possibilidades de permanência.

              – Daí a gente se fode de vez. – concluí.

              – No nosso caso, é bem provável. – concordou o Sabidão – Mas, não há outra coisa a fazer além de continuar tentando mudar algo, até, quem sabe, conseguirmos sair desse ciclo de eterno retorno. Você já leu Nietzsche?

              – Não. – respondi – Mas já vi um filme com aquele cara dos Caça-fantasmas que tinha um lance parecido com isso que você está falando.

              – É O Feitiço do Tempo, com o Bill Murray. – emendou ele – Não é um filme muito bom, mas a realidade daquele personagem era um paraíso se comparada com a nossa.

              – Isso tudo é loucura. – resmunguei, desanimado.

              – Claro que sim. – disse o Sabidão – Tem algum detalhe dessa história que não seja totalmente insano? Veja essa máquina, por exemplo. No começo eu achei que pudesse ser tecnologia alienígena, mas agora estou mais inclinado a pensar que ela possa ter sido criada por pessoas como nós, só que do futuro. Será que não foi alguém lá do futuro que mexeu no passado e acabou criando essas realidades paralelas malucas em que nós estamos? Acho que a existência, como um todo, é algo muito paradoxal.

              – Você também está ficando louco, cara... – falei, levantando com certa dificuldade – Mas não te culpo, porque eu também já me sinto doido pra caralho. Me diz uma coisa: você se lembra de uma dessas realidades alternativas, ou sei lá de que porra você chama isso, que tenha a ver com pregação religiosa, crucificação, ou merdas desse tipo?

              – Não. – disse ele, parecendo realmente surpreso – Por quê? Me fale mais sobre isso.

              Mas, não deu mais tempo de continuar a conversa. Ouvimos o barulho de um carro se aproximando pela estrada que vinha do lado contrário ao Parque.

              – É a velha louca voltando! – gritou o Sabidão – O que vamos fazer dessa vez?!

              – Vou lhe mostrar o que eu vou fazer! – respondi, olhando ao redor.

              Localizei uma pá escorada na parede, perto da janela. Fui até lá, meio cambaleante, a peguei e então me espremi ao lado da porta. Com o dedo entre os lábios, fiz sinal para o Sabidão não falar nada.

              Em seguida, a porta foi aberta e Verônica entrou carregando sacolas de mercado. Rapidamente, me aproximei pelas suas costas e, antes que ela pudesse me ver, desferi um golpe com toda força na parte de trás da sua cabeça. Deu até para ouvir o barulho do crânio se partindo quando foi atingido pela pá.

              Ela desabou de cara no chão e, segundos depois, já havia uma enorme poça de sangue se formando ao redor da sua cabeça. Sem perder tempo, larguei a pá, tirei a bolsa que ela trazia pendurada ao ombro e comecei a revirar lá dentro. Encontrei o pequeno revólver calibre 22 e coloquei na cintura. Em seguida, achei o que estava realmente procurando.

              – Veja! – falei, me sentindo eufórico – Aqui está a chave do seu cadeado. Vou soltá-lo e, enquanto você coloca fogo nesse lugar maldito, eu vou correr até a sala de controle do palco principal da Feira. Se for preciso, vou destruir tudo que tiver lá para impedir que o filme dos Venganno seja exibido. Acho que ainda dá tempo. E depois pronto, estará tudo resolvido!

              Então, enquanto eu soltava as correntes, o Sabidão começou a falar algo, mas eu simplesmente não dei ouvidos ao que ele estava dizendo, porque, de repente, toda a minha atenção se voltou a algo tão macabro que fez com que sentisse o sangue me gelar nas veias.

              Ali do lado, o corpo da Verônica estava se movendo. No começo parecia estar apenas tremelicando, mas logo passou a se sacudir de forma violenta, até ficar virado de barriga para cima. E não foi só isso: a barriga dela começou a pulsar e a crescer, segundo a segundo, como se fosse uma gravidez instantânea.

              – Que merda é essa agora?! – gritei indignado, com a certeza de que algo muito ruim ainda vinha pela frente.

              – Deve ter alguma coisa a ver com aquilo... – disse o Sabidão, com os olhos arregalados, apontando para a parte de cima da máquina esquisita.

              Quando olhei, reparei em algo que até então não tinha percebido: no topo da máquina estava encaixada a pirâmide negra, a mesma que eu já tinha visto das outras vezes. Ela estava começando a vibrar e emitir fachos de luz esbranquiçada.

              – Você ligou a porra dessa máquina?! – perguntei, sentindo o pavor crescer por dentro.

              – Claro que não! – respondeu o Sabidão – Esse negócio está agindo por conta própria. Deve ser algum tipo de ressonância.

              – É sempre essa porra de pirâmide que faz as merdas acontecerem! – resmunguei, já com a intenção de pegar alguma ferramenta e arrebentar aquele objeto dos infernos.

              Só que não deu tempo. O Sabidão me puxou pelo braço e apontou – tão apavorado que não conseguia falar nada – para o corpo de Verônica se contorcendo lá no chão. Em poucos segundos, a barriga já havia crescido tanto a ponto de rasgar as roupas. A pele estava com coloração azulada, com veias e estrias ressaltadas e pulsantes, deixando claro que, se o crescimento não parasse logo, iria simplesmente explodir. E então explodiu. Com um barulho horrível, que eu nem saberia como descrever, a carne se partiu, fazendo voar sangue e outros tipos de coisas nojentas para todos os lados. Um cheiro podre absurdo invadiu o barracão e, imediatamente, eu comecei a vomitar. Isso fez piorar a tontura e cheguei a cair de joelhos. Pensei que iria desmaiar, mas depois de alguns instantes – não sei quanto – comecei a me recuperar um pouco.

              Quando ergui a cabeça, vi o Sabidão imóvel, pálido como uma folha de papel, com os olhos arregalados. Olhei na mesma direção que ele, e novamente achei que ia desmaiar. Naquele exato instante, duas coisas estavam rastejando para fora da barriga destroçada de Verônica. Pareciam vermes, ensanguentados e melecados, só que do tamanho de um gato. As cabeças se pareciam demais com miniaturas de rostos humanos, mas horrivelmente deformados, com dentes pontudos e olhos animalescos. E estavam crescendo. Muito rapidamente.

              O Sabidão não falava nada e nem se movia. Parecia em estado de choque. Eu comecei olhar ao redor, procurando algo que pudesse usar como arma e detonar aquelas coisas, e só então lembrei do revólver que havia pego na bolsa da Verônica. Saquei da cintura e apontei na direção das criaturas, que, naquele momento, já não estavam mais do tamanho de um gato, e sim de uma pessoa. O corpo de cada um daqueles horrores continuava lembrando um verme, só que tinham surgido braços finos e com garras, parecidos com aqueles dos Dillodokers que eu havia visto no vídeo. Como não tinham pernas, as coisas se moviam rastejando, e parecia que o corpo – feito de algum tipo de gosma cinza-esbranquiçada – ia mudando de forma conforme se movimentava. Mas, o pior de tudo eram os rostos deformados, que também pareciam se mover no meio daquela meleca nojenta. Apesar das bocas cheias de dentes pontudos e dos enormes olhos esbugalhados como de algum tipo assustador de peixe esquisito, dava para reconhecer claramente as fisionomias de sujeitos que um dia já foram humanos. Eram os rostos – bizarros e asquerosos – de Walter e Vítor Venganno.

              Do corpo da Coisa-Vítor brotou uma espécie de pênis monstruoso e melequento, de mais de meio metro de comprimento e, com uma daquelas mãos animalescas, ele começou a se masturbar enquanto gritava com uma voz que parecia um guincho de porco: “Foder! Foder!”

              A Coisa-Walter olhou para nós e sorriu, dizendo com uma voz que parecia o som de um trovão: “Que bom que vocês estão aqui para testemunhar!” Ouvi um barulho suspeito e olhei para o lado. O Sabidão havia mijado nas calças.

              O Monstro-Vítor começou a andava na nossa direção, cada vez mais rapidamente. Apertei o gatilho uma, duas, várias vezes, até descarregar a arma. As balas atravessaram a coisa como se fosse um bloco de gelatina. No lugar dos tiros, escorreu gosma, parecendo até que a criatura iria se desmanchar, mas isso durou só alguns instantes, pois logo aquele corpo melequento se refez, anulando os ferimentos.

              Apavorado, comecei a dar alguns passos para trás e puxei o Sabidão comigo, mas ele não se movia, parecia pregado no chão. Sem pensar duas vezes, dei dois tapas fortes no rosto dele e o sacudi com força.

              – Acorda, cara! Reage! Senão essas coisas vão nos matar!

              Isso pareceu ter tido algum feito, pois ele até recuperou um pouco da cor e recuou comigo até o fundo do barracão. Escoradas na parede, estavam mais algumas ferramentas que poderíamos utilizar como armas improvisadas. Peguei uma enxada e entreguei um ancinho nas mãos do Sabidão.

              A Coisa-Vítor estava novamente próxima de nós. Erguemos as ferramentas para nos defender, mesmo sabendo que, provavelmente, teria pouco efeito. Então, o Monstro-Walter se aproximou de repente, agarrou a Criatura-Vítor e, com uma força impressionante, a arremessou para o lado, fazendo com que caísse há vários metros de distância, com um som gosmento.

              – Meu irmão é refém de impulsos reprimidos... – disse o Monstro-Walter, com sua voz cavernosa – Ele não entende que poderá se satisfazer à vontade depois. Agora temos algo mais importante a fazer, para que a nossa apoteose seja completa. E vocês devem testemunhar! Devem cumprir o seu papel de representar a faceta medíocre e mesquinha da humanidade perante o triunfo de uma mente superior!

              A Coisa-Walter rastejou até a máquina e, rapidamente, começou a acionar diversos botões no painel eletrônico com suas mãos asquerosas.

              – Naquela dimensão onde os Venganno foram parar... – cochichou o Sabidão, parecendo pelo menos parcialmente recuperado – Eles devem ter tido suas mentes absorvidas pelos Dillodokers. Agora eles vão usar isso para trazer as outras criaturas para a nossa realidade.

              Então a Coisa-Vítor se aproximou mais uma vez, rastejando em círculos, agitando os braços para o alto e retorcendo seu rosto monstruoso, como se estivesse chorando. “Foder! Comer! Beber! Fumar!”, gritava a coisa com sua voz de porco, como se fosse uma criança mimada fazendo birra.

              Claramente enfurecido, o Monstro-Walter se afastou da máquina e partiu para cima daquilo que um dia havia sido seu irmão, dizendo: “Eu sabia que você não tinha maturidade suficiente para isso!” e o atingiu com um golpe que arrancou metade do seu rosto fora.

              A Criatura-Vítor urrou de dor e raiva enquanto a gosma escura escorria de sua cabeça e imediatamente revidou, arrancando o braço direito da Coisa-Walter. Os dois monstros começaram a se atacar, arrancando pedaços um do outro de forma brutal, mas, poucos segundos depois de uma parte de seus corpos gosmentos ser mutilada, a meleca voltava a se solidificar, moldando o corpo novamente.

              Enquanto as duas coisas brigavam, fazendo voar gosma fedorenta para todos os lados, fiz sinal para o Sabidão me seguir. Poderíamos aproveitar a confusão para tentar fugir, embora não houvesse muita esperança de que lá fora a situação ficaria melhor. Porém, quando tentei passar pelo centro do barracão, o Monstro-Walter percebeu minha movimentação, me agarrou pelo braço e me arremessou de encontro à parede do fundo. Eu voei por alguns metros, bati contra as tábuas e deslizei até o chão sentindo tanta dor que tive certeza de ter quebrado duas ou três costelas. O Sabidão correu na minha direção.

              Enquanto tentava levantar com a ajuda do Sabidão, percebi que a Coisa-Walter havia levado vantagem na luta contra o irmão. Os pedaços da Criatura-Vítor estavam espalhados pelo chão, mas a gosma se movia e ia lentamente se juntando de novo. Com certeza todo o corpo iria se reconstituir mais uma vez, mas, antes disso, o Monstro-Walter abriu uma pequena caixa de madeira que havia sobre a mesa e retirou algo de dentro. Rastejou até os restos do irmão, que se retorciam pelo piso, recitou algumas palavras em um idioma desconhecido e jogou sobre eles um punhado de cristais pretos, que me pareceram idênticos aos do colar que Vítor usava na primeira vez que o encontrei. Assim, os pedaços da Coisa-Vítor derreteram de vez em uma poça de gosma, que logo começou a evaporar até sumir totalmente, não deixando nenhum vestígio sequer no assoalho.

              – É uma pena que sua mente fosse frágil demais para suportar a pressão. – resmungou a Criatura-Walter, antes de voltar a manusear o painel da máquina.

              Sentindo muita dor, consegui ficar em pé, mas não sabia  mais o que fazer. Pretendia perguntar se o Sabidão tinha alguma ideia, mas uma série de gargalhadas chamou nossa atenção.

              O Monstro-Walter ria satisfeito enquanto a máquina começava a emitir um facho de luz que alternava entre o esbranquiçado e o azulado. Logo aquela luminosidade se concentrou formando uma esfera de uns dois metros de diâmetro e, em meio a um som perturbador, as coisas começaram a surgir através dela. Eram várias. Foram saindo da esfera de luz, uma depois da outra. A aparência de cada uma variava. Tinha as que lembravam insetos gigantes, algumas se assemelhavam a lesmas, outras eram bizarras demais até para tentar descrever, mas todas pareciam feitas de gosma e eram igualmente horríveis.

              As primeiras criaturas que chegaram arrebentaram a parede da frente do barracão e desceram pela estrada, em direção à parte central do parque. A maioria das outras seguiu na mesma direção, mas algumas ficaram para trás e, lentamente, começaram a avançar em direção ao Sabidão e a mim.

              – Bem-vindos ao meu Aeon! – gritou a Coisa-Walter, para em seguida emendar uma pavorosa gargalhada que se prolongava e se prolongava, parecendo que iria durar para sempre.

              As criaturas foram nos cercando e não havia para onde correr. Atrás de nós, apenas a janela que dava para o barranco íngreme, um verdadeiro precipício de dezenas de metros de altura, revestido pela mata escura. Uma das coisas esticou um braço melequento, agarrou o Sabidão pelo pescoço e o ergueu no ar.

              – Ainda não foi dessa vez, Sandro... – conseguiu resmungar ele, com o pouco fôlego que lhe restava, parecendo triste e conformado ao mesmo tempo.

              Eu não seria o próximo. Qualquer coisa era melhor do que cair nas garras daqueles vermes nojentos. “Que se foda!”, gritei, um instante antes de atravessar correndo – mesmo com muita dor nas costelas – os dois ou três metros que me separavam da janela e me atirar através dela. Enquanto despencava lá para baixo, ouvia as gargalhadas do Monstro-Walter ficando cada vez mais distantes. O chão, lá no fundo do barranco, se aproximava muito depressa, mas, quando cheguei até ele, ao invés de sentir a dor de me esborrachar de encontro às pedras e raízes das árvores, tive a sensação de passar direto, mergulhando na escuridão vazia do infinito.

 

 



 

 

 

5º Ciclo

 

              Acordei com a minha vó gritando no corredor: “Sandro? Sandrinho! Você não vai na Feira? Já passa das quatro horas da tarde, menino!”

              Quando abri os olhos senti um tipo de tontura e uma leve dor de cabeça.

              Pulei para fora da cama, com o coração disparado. Tudo parecia absolutamente normal na penumbra do meu quarto. Teria sido tudo um pesadelo? Um pesadelo fodidamente realista e assustador, mas apenas isso? Poderia ter sido efeito colateral do remédio experimental? Seria uma reação adversa por ter tomado um monte de cerveja, embora os médicos e a bula recomendassem expressamente que não fizesse isso? Algum tipo de premonição? Ou apenas o início de um novo ciclo, que recuou um pouco mais no tempo?

              Abri a janela e olhei para fora. A tarde estava nublada e ao longe, mais ou menos na direção do Parque de Eventos, havia algumas nuvens escuras que lembravam vagamente o formato de uma espiral, dando ao céu uma aparência estranha e sinistra...       

 

 

Fim...?

 

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25 de set. de 2022

DILLODOKERS - 3º Ciclo

 

3º Ciclo

 

Por André Bozzetto Jr

 

              Quando despertei, o primeiro pensamento que me veio à mente foi: “Morri e cheguei no inferno!”. Com a tontura que senti, caí de joelhos e achei que fosse desmaiar. Na verdade, até torci para que isso acontecesse, mas, como não aconteceu, fechei os olhos com força e tentei tapar os ouvidos para fugir da realidade ao redor, sem resultado.

              Não sei quanto tempo fiquei nessa posição, mas como os terríveis barulhos que insistiam em me atormentar pareciam ficar cada vez piores e mais ameaçadores, tive aquela reação instintiva de tentar fazer algo. Além do choro, dos gritos de dor e desespero, havia também um som diferente de qualquer outro. Era um tipo de zumbido grave e profundo que não parava nunca e parecia vir diretamente do céu.

              Levantei lentamente, tentando achar justificativas para fugir daquele horror em que estava enfiado. “Estou alucinando por causa de um efeito colateral do remédio experimental”. “Bati a cabeça, fiquei em coma e isso tudo é ilusão do meu cérebro sequelado”. “Enlouqueci de vez!”. Tanto fazia. O terror estava ali. Em tudo.

              Eu me encontrava, de novo, diante do palco principal da Feira da Mandioca, ou do que havia restado dele, porque o parque inteiro estava destruído. Vários focos de incêndio eram visíveis, não apenas ali, mas também nas casas da rua próxima à entrada e, aparentemente – pelos clarões e fumaça distantes – até no centro da cidade. Havia cadáveres e pedaços de corpos mutilados por todos os lados. Sangue, tripas e ossos descarnados se misturavam aqui e ali a camadas de algum tipo de gosma escura e nojenta. O fedor que impregnava tudo era tão absurdo que chegava a arder o nariz. Tive ânsias horríveis, mas não cheguei a vomitar nada, o que pareceu piorar a sensação de tontura.

              Quando olhei para cima, vi que, além daquela escuridão anormal, havia fachos de luz avermelhada se espalhando entre as nuvens, como se o próprio céu estivesse pegando fogo.

              Mas, o pior de tudo não era nada disso. O que mais me apavorou foi ver que, em meio a tantos cadáveres, ainda havia muitas pessoas vivas perambulando por todos os lados, só que cada uma delas ou estava matando ou sendo morta por alguém. Avistei ao longe pelo menos dois caras com armas de fogo atirando a esmo em quem quer que estivesse ao redor. Também tinha gente armada com facas ou facões estripando ou esquartejando outros. Mas, a maioria mesmo usava objetos dos arredores como armas improvisadas. Vi o Alceu, da borracharia que ficava perto da minha casa, perseguindo um grupo de crianças e utilizando como porrete uma ripa da cerca de madeira. Poucos metros adiante de onde eu estava, observei – cheio de horror – o velho Sílvio, da padaria, ajoelhado sobre a sua esposa, esmagando a cabeça dela com uma grande pedra enquanto gritava “Amém! Amém!”.

              Olhei para a minha direita e vi vários pedaços de metal retorcido que eram parte da estrutura de sustentação do lonão que cobria o palco principal, mas que, naquele momento, já não era nada além de escombros. Ajuntei uma barra de ferro de pouco mais de um metro de comprimento e senti um impulso quase incontrolável de sair arrebentando as cabeças daqueles que estivessem atacando outras pessoas. Poderia começar pelo velho Sílvio, logo ali na frente. Porém, com uma força de vontade que tirei não sei de onde, consegui manter a lucidez e entender que isso era a influência dos Dillodokers agindo sobre a minha mente, tentando me induzir a fazer parte daquele show de horrores.

              Larguei a barra de ferro e saí caminhando rápido para resistir àquela tentação infernal. Mas, ir para onde? Pensei em subir até os barracões abandonados na parte antiga do parque, onde os putos dos irmãos Venganno faziam suas insanidades. Pelo visto, não restava muito a ser feito, mas, que outra opção havia? Ir para o centro da cidade? Fora de cogitação. Provavelmente estaria ainda pior do que no parque. Voltar para casa? Era melhor nem pensar no que encontraria lá.

              Com o coração apertado, tentei andar rápido, me mantendo afastado dos loucos que atacavam uns aos outros como feras selvagens. Porém, logo a minha atenção se voltou para mais uma cena bizarra no meio daquele caos todo. Perto da estradinha que dava acesso à parte antiga do parque, se encontrava um grupo de umas vinte ou trinta pessoas que parecia indiferente à matança que acontecia ao redor. Estavam todos de joelhos, como se rezando enquanto ouviam as palavras de um homem que discursava e gesticulava sobre um palco improvisado – que nada mais era do que dois engradados de cerveja com uma tábua por cima – tendo ao fundo uma grande cruz também improvisada, feita com partes da estrutura de uma das vendas de doces. Senti um calafrio sacudir o meu corpo quando identifiquei o sujeito. Era o Sabidão. Ele estava sem camisa e, com algum objeto cortante, havia talhado uma cruz no próprio peito, de onde escorria um bocado de sangue. Quase que imediatamente, ele interrompeu sua pregação e ficou me encarando, com olhar alucinado.

              – Vejam! – gritou o Sabidão, apontando para mim e induzindo todos a olharem na minha direção – Ali está o Messias que estávamos esperando! Vamos crucificá-lo para que o seu sangue traga a redenção de nossos pecados!

              Em meio a muitos gritos de “Aleluia!”, algumas pessoas pegaram a cruz improvisada e começaram a trazer na minha direção, enquanto as demais foram me cercando. Eu logo entendi o que aqueles filhos da puta queriam fazer. Mesmo tomado de pavor, comecei a dar socos e chutes para todos os lados, tentando afastar aqueles loucos o suficiente para sair correndo. Por um momento, cheguei a ter esperança de que iria dar certo. Derrubei uns quatro ou cinco na base da porrada, até que senti uma pancada muito forte na parte de trás da cabeça. Fui tomado por uma dor intensa, mas que durou apenas alguns segundos. Depois a escuridão daquele céu estranho despencou lá de cima e cobriu os meus olhos.

 

 

O próximo ciclo inicia em breve...

 

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18 de set. de 2022

DILLODOKERS - 2º Ciclo

 

2º Ciclo

 

Por André Bozzetto Jr

 

              Quando alguém trombou no meu ombro, retomei a consciência ainda meio entorpecido, como se estivesse despertando de um estranho estado de hipnose ou, no mínimo, acordando de um sono profundo marcado por um pesadelo esquisito.

              Então me dei conta de onde estava: debaixo do lonão amarelo, diante do palco principal da Feira da Mandioca, onde ocorria a Mostra Cultural. O povo todo ali ao redor compenetrado, olhando para o telão onde imagens ruins – tipo aquelas gravadas com uma câmera VHS vagabunda – mostravam o interior escuro e sujo de um barracão abandonado, com um barulho bizarro e perturbador ao fundo. Era aquele filme. Era “Dillodokers”.

              A sensação de vertigem estava de volta, e cheguei a pensar que iria desmaiar enquanto tentava organizar as ideias e entender o que poderia estar acontecendo. Será que eu tinha alucinado? Vítor Venganno, a pirâmide negra, a multidão ensandecida bebendo, comendo e fodendo num caos infernal... seria tudo ilusão? Ou a ilusão seria aquele exato momento, onde eu parecia ter voltado no tempo? Poderia ser efeito da porra do remédio experimental? Caralho, eu não devia ter bebido.

              Ainda estava olhando ao redor e me sentindo desorientado, quando notei um sujeito grandalhão e careca que estava bebendo no canto esquerdo do bar. Ele pegou uma lata de cerveja, abriu de forma apressada e virou tudo de uma vez só. Amassou a lata, pediu outra e fez a mesma coisa. Depois de novo, e de novo. Deve ter esvaziado umas seis ou sete latas em um minuto. Enquanto bebia, parecia que ficava cada vez mais agitado e ansioso. Xingava os caras do bar porque demoravam para lhe entregar as cervejas, e tomava tudo de forma tão desesperada que ia derramando boa parte pelo rosto e pelo peito. De repente, outras pessoas começaram a fazer exatamente a mesma coisa. O grandalhão careca, cada vez mais irritado com a velocidade que lhe entregavam as latas, pulou o balcão do bar e começou ele próprio a pegar as cervejas no freezer. Os funcionários tentaram impedi-lo, mas, sem mais nem menos, dezenas de pessoas começaram a invadir o bar, abrir as bebidas e tomar tudo ali mesmo, como se não houvesse amanhã. E eram homens, mulheres, crianças, velhos, de tudo. Estava acontecendo novamente!

              Virei para o meu amigo Carlinhos, e, como da primeira vez, não deu tempo de lhe dizer nada, pois ele já estava correndo na direção do bar, abrindo caminho aos empurrões entre o pessoal que se acotovelava ali, até pular o balcão e começar a disputar latas de cerveja com os outros ensandecidos. Quando conseguia pegar alguma, enfiava na boca com desespero, antes que alguém tentasse lhe tirar das mãos e beber por primeiro. Sim, definitivamente, estava acontecendo tudo de novo!

              Senti mais uma vez aquela sensação horrível de pavor e urgência, mas, mesmo assim, consegui me apegar a uma migalha de esperança. Não adiantava ficar tentando entender a situação. Tudo iria sair de controle muito rapidamente e aí não teria mais jeito. Era preciso agir. Pensei que se eu pudesse chegar logo ao barracão abandonado onde estava o círculo ritualístico daquele filho da puta do Vítor Venganno, então poderia fazer algo antes de o pandemônio se tornar irreversível. Não tinha a menor ideia do que seria esse algo, já que a minha tentativa anterior não tinha dado muito certo, mas, chegando lá talvez surgisse alguma possibilidade. Só havia isso para acreditar.

              Então segui correndo pela extremidade direita do parque, sem passar pela parte central, e assim ganhar tempo. Procurava não olhar diretamente para ninguém, evitando que as cenas bizarras – que ficariam piores a cada minuto – tirassem meu foco e me atrasassem. Conforme os resmungos, risadas, gemidos e até gritos iam aumentando, eu me esforçava para não dar ouvidos. Não tinha certeza se estava totalmente imune àquela loucura toda ou se ainda poderia acabar absorvido por aquilo.

              Como mudei o trajeto em relação à primeira vez, não encontrei pelo caminho o meu vizinho João e nem o meu irmão. Também não passei em frente ao telão onde estaria o Vítor Venganno, pois ele não iria ter muita serventia mesmo e só iria me atrasar. Contudo, quando cheguei ao início da estradinha que subia o morro e levava à parte antiga do parque, encontrei o Sabidão. Ele estava parado, observando o céu escuro e ameaçador. Quando passei ao lado dele, pareceu me notar.

              – Sandrinho, você sabia que um portal dimensional, em tese, poderia não apenas fazer a conexão entre duas dimensões distintas, mas também permitir a passagem para outro ponto do espaço-tempo? – perguntou ele, olhando na minha direção – Realidades alternativas... multiversos... parece que alguém está bagunçando as linhas temporais.

              Não parei e nem respondi nada. Apenas comecei a subir o morro o mais rápido que podia. Eu não fazia ideia de porque o Sabidão ficava falando aquelas coisas. Dava a impressão que ele entendia, ou pelo menos desconfiava do que estava acontecendo. Não ficava ensandecido como o povão, mas também não parecia normal. Talvez ele sempre tenha sido meio louco, mas de um jeito diferente.

              Quando cheguei diante dos barracões, precisei me escorar em uma árvore para recuperar o fôlego. A tontura estava piorando e lá embaixo a algazarra aumentava cada vez mais. Foi só então que percebi algo diferente. O primeiro prédio, onde Vítor fazia seu ritual, não estava tão detonado como da outra vez. Parecia até razoavelmente bem conservado.

              Sem entender o que aquilo significava, tentei abrir a porta, mas estava trancada, assim como as duas janelas da frente. Andei para a esquerda e vi que a janela daquele lado também estava fechada, porém, frouxa. Provavelmente abriria se forçada. Então, recuei alguns passos, peguei embalo e me joguei com o ombro de encontro a ela. Os tampos de madeira velha se abriram com um estrondo e eu caí para dentro.

              Quando levantei a cabeça, fiquei chocado. O cenário estava muito diferente. Várias lâmpadas iluminavam o ambiente e deu para ver que todas as ferramentas e tralhas tinham sido empilhadas junto às paredes para liberar espaço. No centro, havia mesas e escrivaninhas com pilhas de livros e dois computadores de onde saiam grossos cabos que se conectavam a uma grande máquina, muito esquisita. Dava para perceber que ela tinha sido construída de forma improvisada, pois contava com partes de vários outros eletrodomésticos e aparelhos. Consegui reconhecer componentes de computadores, fornos micro-ondas, máquinas de raio-x e xerox, todos conectados a uma câmara de bronzeamento artificial e outros elementos que eu não sabia o que eram. E do lado dela – me olhando com cara de espanto – estava um sujeito que, para a minha surpresa, não era Vítor Venganno. Era o irmão dele, Walter, o nerd, o CDF, o gênio das feiras de ciências. Estava ali, com suas roupas bregas de sempre e seus óculos ridículos. A diferença é que tinha um tipo de aparelho auditivo esquisito na orelha direita. Eu não lembrava de ele ter problemas de surdez.

              – Vá embora! – disse Walter, se recuperando do susto causado pela minha invasão.

              – Vou nada! – respondi, já sentindo a raiva aumentando novamente – Onde está aquele bosta do seu irmão?

              – Você não vai encontrar ele aqui. – disse Walter, voltando a mexer na máquina, como se a minha presença ali fosse apenas um inconveniente – Caia fora. Tenho coisas importantes para fazer.

              – Coisas importantes, né?! – retruquei – Como trazer os Dillodokes para tocar o terror no nosso mundo!

              – Como você sabe disso?! – questionou Walter, interrompendo novamente seu trabalho e me olhando com expressão muito espantada.

              – Seu irmão me contou tudo.

              – O meu irmão não pode ter lhe contado nada! – gritou ele – Fale a verdade!

              – Foi ele sim! – insisti – Mas não aqui. Não agora. Foi... antes... no passado... na primeira vez que tudo isso aconteceu.

              Walter andou na minha direção e parou exatamente na minha frente, me olhando, boquiaberto.

              – Incrível! – disse ele, pensativo – Agora entendi. Então aquela anomalia eletromagnética que os sensores captaram foi a sua consciência atravessando para esse plano da realidade. E foi o meu irmão quem fez você parar aqui?

              – Foi meio sem querer, mas foi. – respondi, irritado – Mas não foi com a porra de uma máquina como essa aí. Foi com um ritual.

              – Com um ritual... – repetiu Walter, começando a caminhar em círculos, e com expressão de quem estava se esforçando para processar todas as informações – Meu irmão sempre teve essa predileção mística e ocultista, enquanto eu sempre fui um homem da ciência.

              Ele andou até a escrivaninha e pegou o pergaminho misterioso, o mesmo que eu já tinha visto com Vítor.

              – Você consegue entender a grandiosidade das formas de inteligência que desenvolveram isso aqui?! – disse Walter, balançando o pergaminho com empolgação – As possibilidades de sua aplicação são tão absurdamente vastas! Eu desenvolvi uma máquina, mas há múltiplas variáveis. Sabe-se lá quantas!

              – Não estou entendendo nada dessa conversa! – reclamei – De onde veio essa porra?!

              – É uma antiga transcrição de algo que estava em posse de alguma civilização ainda mais antiga, com certeza milenar... – respondeu ele – Mas a origem desse conhecimento eu acredito que seja extraterrestre, assim como aquilo.

              Então ele apontou para a parte de cima da sua máquina e só naquele momento eu vi que ali estava encaixada a pequena pirâmide negra, que anteriormente tinha visto no centro do círculo ritualístico do Vítor Venganno.

              – Se isso é tão antigo, como pode ter instruções para construir uma máquina com aparelhos dos dias de hoje? – questionei.

              – No pergaminho não têm instruções, mas sim conceitos. – disse Walter – Vai da capacidade de cada leitor decodificar isso em algo funcional.

              – Bom, chega de papo furado! – falei, sentindo a vertigem piorar – Precisamos parar tudo isso antes que não tenha mais volta.

              – Parar?! – questionou ele, parecendo realmente surpreso com a ideia – Parar por quê?!

              – Você é muito cara de pau! – retruquei, já esgotando o que ainda restava de paciência – Trazer esses demônios para cá, apenas por vingança! Destruir um monte de gente inocente para revidar bullying! Isso é doentio!

              – Isso é unir o útil ao agradável... – disse Walter, parecendo muito convencido do que falava – Os Dillodokers não criam nada, apenas potencializam o que já existe dentro de cada um. Não há ninguém inocente nessa história. Além disso, essa destruição que tanto lhe preocupa é para trazer um bem maior. Eu não estou sacaneando essas pessoas, mas sim ajudando.

              Eu estava tão chocado ao ouvir o babaca falando aquelas merdas que nem sabia o que dizer. Então ele continuou com suas explicações:

              – Você é a prova da existência de múltiplas dimensões da realidade, umas paralelas as outras. As percepções obtidas através dos nossos cinco sentidos nos transmitem a ilusão de que nossa mente é una e centrada em nosso cérebro, mas isso não é verdade. Na realidade, nossa mente é composta por múltiplos estados de consciência, que coexistem ao mesmo tempo, em diferentes dimensões. Nós habitamos onde está o foco de nossa atenção. A dimensão que parece mais real é aquela que capta com mais eficiência nossa percepção em detrimento das outras. Mas algumas dessas dimensões são melhores do que outras. Em algumas, as pessoas são cheias de vícios mesquinhos, como nessa em que estamos. Aqui as pessoas são orgulhosas, vaidosas, gananciosas, luxuriosas, odiosas e assim por diante. Mas há outras onde não é assim. Eu não sei quantas dimensões existem, mas se essas cheias de vícios e degradação forem destruídas, todas que sobrarem serão melhores. Então, não importa em qual nossa consciência habitará, pois será uma boa dimensão para se viver. Entendeu agora? Os Dillodokers só destroem o que precisa ser destruído.

              – Você é louco! – gritei – Quem pode garantir que, nessas dimensões sem defeitos, caras como eu e você realmente existimos?! Você se acha perfeito?! Pense em nossos familiares e amigos... não existe ninguém sem defeitos!

              Ele abriu a boca para tentar argumentar mais alguma coisa, mas eu não estava disposto a ouvir. Lá fora os gritos aumentavam e a minha vertigem também. Olhei ao redor e avistei em um canto do barracão algumas velhas ferramentas amontoadas. Fui até lá e peguei uma picareta. Já sabia o que fazer.

              – Não posso permitir isso. – disse Walter, às minhas costas – Solte essa coisa.

              Quando me virei, dei de cara com ele apontando uma arma para a minha cabeça. Parecia uma 765, como uma das que o meu pai tinha. Larguei a picareta.

              – Você pensou que eu não teria nenhuma prevenção contra interrupções externas ao realizar um trabalho tão importante como esse? – disse Walter – Você não entende?! O fato de você estar aqui é uma sincronicidade. Você tem um papel importante nessa narrativa. É um dos avatares dos novos tempos, assim como eu. Não gostaria de ter que atirar, mas, se você me obrigar, é isso que vou fazer.

              A arma estava apontada para o meu rosto, a pouco mais de um metro de distância. Foi aí que percebi o que iria salvar a minha vida. A história ainda não tinha acabado.

              Dei um passo em frente e Walter tentou apertar o gatilho. Uma, duas, três vezes, sem sucesso. Rapidamente, tomei a a arma das mãos dele e o acertei no meio da cara com um soco de direita. Ele desabou no assoalho, quase desmaiado. Os óculos e o aparelho auditivo voaram para longe. Apesar de ser um pouco mais alto do que o seu irmão Vítor, Walter era tão magrelo e fracote quanto ele. Agora que estava desarmado, não representava mais perigo nenhum.

              – Você é tão otário que nem sabe que precisa abaixar a trava da arma para atirar. – falei, colocando a pistola na cintura – Agora, chega dessa loucura!

              Walter não disse nada. Apenas rastejou pelo chão apressado, em busca do aparelho auditivo. Por que o aparelho e não os óculos? Foi aí que entendi.

              Caminhei rapidamente até o pequeno objeto e, antes que Walter o alcançasse, eu o pisoteei várias vezes, até despedaçá-lo.

              – Não! Não! – gritou ele, com voz de choro.

              – Era essa porra que lhe protegia da influência dos Dillodokers, né?! – falei, furioso – Então agora você vai provar do seu veneno!

              Nesse momento, caminhei na direção da máquina com a picareta em mãos. Com sete ou oito golpes ela já estava destruída, completamente inutilizável.

              – Seu idiota! Ignorante! – gritou Walter, ainda caído no chão – Não percebe que destruindo a máquina você só impediu os Dillodokers de se materializarem nesta dimensão?! O que está acontecendo lá fora vai continuar. É um processo que se retroalimenta do mal que existe dentro de cada um, lembra?!

              Infelizmente, ele aparentava estar certo nisso. A algazarra no centro do parque parecia mais infernal do que nunca. Gritos apavorantes – de fazer gelar o sangue – davam até a impressão de estarem se aproximando, como se parte daquela multidão enlouquecida estivesse subindo o morro correndo.

              Então olhei para algo reluzente no chão. A pirâmide negra havia caído de cima da máquina enquanto eu a destruía e estava vibrando e emitindo pequenos fachos de luz esbranquiçada junto ao assoalho. Lembrei que, da primeira vez que a vi, apenas lhe removi do centro do círculo ritualístico com um chute. Mas, e se agora eu a destruísse totalmente? O que aconteceria?

              Me aproximei da pirâmide e ergui a picareta. Quase ao mesmo tempo, a porta e as janelas da frente do barracão foram arrombadas por uma multidão de gente enlouquecida que entrou gritando e quebrando tudo que havia pela frente, como uma horda de zumbis em um filme de terror, só que pior, porque era real.

              – É a Ira, Sandro! – gritou o desesperado Walter, um segundo antes de dezenas de pessoas se jogarem sobre ele, se acotovelando, o espancando e arrebentando seu corpo com as mãos. 

              Foi nesse instante que eu desferi o golpe e então tudo foi tomado pela escuridão. Não apenas nós e o nosso mundo, mas o universo, o cosmos e a porra toda que havia na minha mente.

 

 

O próximo ciclo inicia em breve...

 

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