2 de out. de 2022

DILLODOKERS - 4º e 5º Ciclos

 

4º Ciclo

 

Por André Bozzetto Jr

 

              Sabe aquelas noites em que você tem um sonho tão assustadoramente real que quando acorda está ofegante, com o coração acelerado e ao mesmo tempo grato por ter despertado? Foi assim que me senti naquele momento. A experiência mais assustadora que já tinha tido na vida. Demorei alguns minutos para me situar. A tontura estava bem forte, mas diminuiu um pouco quando comecei a respirar fundo e tentar me acalmar. Logo me lembrei de tudo e entendi onde estava.

              Na entrada do Parque de Eventos, tive a impressão de que, além do pessoal de fora, 90% da cidade já estava ali. Adultos andando com crianças chorando e esperneando para lá e para cá, jovens bebendo e dando risada, velhos observando tudo com olhos arregalados e fofocando. Tudo normal.

              Estava acontecendo de novo. Mas, por algum motivo que nunca conseguiria explicar, dessa vez havia recuado um pouco mais no tempo. Era inútil ficar tentando entender o que estava acontecendo. No fim, pouca diferença faria. O importante era agir. Calculei que deveria faltar uns 20 ou talvez 30 minutos até o filme psicótico do Vítor Venganno começar a ser exibido. Isso me dava uma importante vantagem que não tinha tido nas outras vezes. Pensei em ir até a sala de controle do palco principal e quebrar tudo, mas logo desisti da ideia, pois alguém poderia dar um jeito de acabar exibindo o filme mais tarde, de outra forma. Também não tinha certeza se os babacas dos irmãos Venganno não poderiam ter alguma outra carta na manga para fazer o caos iniciar mesmo sem o vídeo. Então, o mais lógico a fazer era ir direto ao centro da porra toda. Sem perder nem mais um segundo, saí correndo em direção aos barracões abandonados na parte antiga do parque.

              No caminho, procurava não olhar para ninguém especificamente, para não correr o risco de acabar me distraindo. Sabia que não adiantaria pedir ajuda a outras pessoas, pois para isso precisaria tentar convencê-las de tudo que eu dissesse, o que seria, além de quase impossível, também demorado. Não havia tempo a perder, por isso eu só corria, trombando e empurrando quem estivesse pela frente.

              – Meu Deus! Que grosso! – reclamou uma guria, quando esbarrei nela.

              – Deve estar maconhado! – resmungou uma velha, quando atravessei cambaleando no meio do grupinho onde ela e outras amigas fofocavam.

              Cheguei a me perguntar quem eu encontraria lá em cima dessa vez. Vítor? Walter? Ambos? Não importava. Eu quebraria a cara de qualquer um sem pensar duas vezes para impedir que o pandemônio começasse. Eu poderia até matar aqueles putos se fosse preciso. Pode apostar que sim.

              Não sei se foi por desespero ou pela esperança de que dessa vez pudesse dar certo, mas quando percebi já tinha subido o morro e estava diante dos barracões abandonados. Enquanto recuperava o fôlego, observei que novamente, a paisagem estava diferente. Havia uma cerca no limite do parque e pendurada nela uma placa escrito “Propriedade Particular – Entrada Proibida”. Escalei os arames sem maiores dificuldades e pulei para o outro lado. Notei que o primeiro dos barracões também tinha diferenças. A porta e as duas janelas da frente tinham sido substituídas por outras mais reforçadas e estavam bem trancadas. Porém, quando contornei pela direita, vi que a janela lateral – quase escondida pelas árvores – continuava a mesma. Então, era só fazer como da vez anterior. Corri e me joguei com o ombro de encontro aos tampos de madeira. Eles se abriram com um estrondo e mergulhei de cabeça  para o lado de dentro.

              Me levantei rapidamente e percebi que o interior também havia mudado. Continuava tendo ferramentas, tábuas e tralhas diversas amontoadas junto às paredes, mas no centro, ao invés daquela maluquice improvisada do Walter Venganno havia uma máquina completamente diferente. Era feita de algum tipo de metal negro – ou pelo menos parecia metal – e tinha um formato que me lembrou uma locomotiva de um trem antigo, daqueles tipo “Maria Fumaça”, só que sem rodas ou aberturas. Na verdade, essa descrição é bem ruim, porque era algo claramente moderno e ultratecnológico, só que não conseguia pensar em uma comparação melhor. Em uma das laterais da coisa havia uma grande tela plana onde piscavam centenas de botões coloridos, figuras geométricas complicadas e símbolos desconhecidos. Ao lado do monitor, segurando um bloco de anotações nas mãos e me olhando com expressão séria estava um cara. Só que, para a minha surpresa, não era nenhum dos irmãos Venganno. Era o Sabidão.

              Ele estava com as roupas encardidas e amassadas e tinha sangue ressecado grudado na testa e ao redor do nariz. Mas, o que mais me impressionou foi o fato de ele estar preso pelo tornozelo direito a uma corrente de mais ou menos uns cinco metros de comprimento, afixada em um presilha de ferro junto ao chão.

              – Você chegou mais cedo dessa vez... – disse o Sabidão, voltando a olhar para as suas anotações, não parecendo surpreso com a minha presença – Espero que seja um bom sinal.

              – Como assim?! O que você está fazendo aqui?! Que porra está acontecendo?! – questionei, sem entender nada.

              – Lá vamos nós. – suspirou ele – As mesmas perguntas de sempre. Tudo de novo.

              Permaneci alguns instantes em silêncio, tentando processar as novidades. Senti a tontura começando a aumentar de novo. Devo ter ficado com uma tremenda cara de otário, porque o Sabidão simplesmente recomeçou a falar, como alguém que está explicando algo a uma criança, sem muita paciência.

              – Vamos lá. Vou dar um resumo da situação. – disse ele, aparentando estar entediado – Aquele neurótico do Walter Venganno trouxe essa máquina, não sei de onde. Ele e o irmão maconheiro, o Vítor, começaram a fazer experimentos e descobriram que essa coisa pode abrir portais entre diferentes pontos do espaço-tempo e até entre dimensões paralelas – o que, para fins práticos, dá quase na mesma – só que eles não sabiam usar direito. É um negócio extremamente complexo e, para falar a verdade, eu ainda não sei exatamente o que eles teriam feito caso soubessem operar o equipamento de forma eficiente. O fato é que, num desses testes, eles tiveram acesso a outro plano da realidade, onde existem seres que eles chamaram de Dillodokers e – pelo que pude entender – são personificações de sentimentos negativos que todo mundo sente em alguma medida, o que mostra que há, ainda que de forma limitada, inconsciente e imperceptível – contato entre essas várias dimensões, ou pelo menos entre algumas. Só que essas criaturas são, digamos assim, “negatividade pura” e quanto mais acesso elas tiverem à nossa dimensão, mais controle podem exercer sobre nossas mentes e isso as fortalece porque elas se alimentam da nossa energia psíquica. Em contrapartida, a gente fica cada vez mais louco e, no fim, você sabe como isso termina.

              – E aqueles babacas acreditaram que poderiam controlar esses seres e usá-los para se vingar de todo mundo, porque os “coitadinhos” sofriam bullying na escola. Bem coisa de filho da puta mesmo. – disse eu, já sem muita paciência – Mas isso é mais ou menos o que eu já sabia. Quero ouvir o resto.

              – Eles fizeram aquela merda de filme e deixaram o plano todo organizado para ser posto em prática hoje, já que a Festa da Mandioca estaria lotada. – continuou o Sabidão – Só que antes disso eles tiveram uma ideia mais ousada: tentar abrir um portal para que os Dillodokers atravessassem fisicamente para esta realidade ao invés de apenas agirem sobre nossas mentes.

              – Terror pouco é bobagem. – falei, sem poupar na ironia.

              – Exato. Mas aí, quando eles fizeram um teste, algo deu errado e, ao invés de materializar algum dos Dillodokers, foram eles que desapareceram, decerto tragados para alguma outra dimensão.

              – Essa foi boa! – disse eu, sem conter uma risada.

              – Pois é... – continuou o Sabidão – E antes que você me pergunte como eu sei de tudo isso, é só olhar para aquela câmera no tripé ali atrás. Eles filmavam todos os experimentos e o Walter mantinha diários detalhados com o avanço das pesquisas.

              – Muito bem... – concordei, observando a câmera poucos metros adiante – E como você se envolveu nessa história?

              – Agora a coisa começa a ficar ainda mais bizarra. – disse ele – Lembra da mãe do Walter e do Vítor?

              – Sim. – respondi – Verônica, uma mulher meio histérica. Fazia escândalos na escola quando acontecia qualquer coisinha com os filhos.

              – Exatamente. – concordou ele – Pelo visto, nesse caso, a loucura é de família. Mas, o fato é que ela sabia que os filhos estavam fazendo algo neste local e, quando eles não voltaram para casa, veio até aqui procurá-los. Obviamente, não os encontrou, mas viu a câmera ligada e assistiu a filmagem onde os dois desaparecem após acionarem a máquina. Então me procurou, desesperada, pedindo para eu vir até aqui analisar a situação e ver se podia trazê-los de volta. Achei a história muito doida, mas decidi vir, por pura curiosidade. Para o meu espanto, o negócio era real mesmo. Passei muitas e muitas horas lendo os diários, assistindo as filmagens e analisando a máquina e, por fim, decidi que seria perigoso demais acionar novamente uma coisa tão poderosa e sobre a qual se sabia tão pouco. Quando disse para a Verônica que o melhor era não fazer nada – ou que pelo menos que eu não faria nada – ela surtou, sacou um revólver da bolsa e falou que só me deixaria ir embora quando trouxesse os filhos dela de volta. Então me trancou no banheiro lá no fundo e saiu. Voltou um tempo depois trazendo água, comida e essa corrente. Exigiu que eu me acorrentasse e ficasse trabalhando em uma forma de fazer a dupla de otários reaparecer. Como você pode perceber pela minha aparência, sempre que eu tento fugir acabo me dando mal.

              – Que loucura! – eu disse, sentindo a vertigem piorando mais ainda – E onde ela está agora?

              – Foi buscar mais comida, mas logo vai voltar.

              – E o que vamos fazer?! – perguntei, ansioso.

              – Esse é o problema! – respondeu o Sabidão, exaltado – Nós já fizemos de tudo! Você não percebe, mas nós estamos presos em algum tipo de looping temporal, onde essa merda de dia fica se repetindo de  novo, de novo e de novo! Teve uma vez onde eu acabei acionando a máquina, só que quem apareceu não foi nenhum dos babacas dos irmãos Venganno e sim um dos Dillodokers! Com certeza ele me matou, mas, ao invés de eu ir para o céu, para o inferno ou algo assim, reapareci aqui e começou tudo de novo. Mudei a configuração da máquina, acionei novamente e surgiu um Dillodoker diferente. Morri, e o ciclo reiniciou de novo. Então você começou a aparecer. Tentou me salvar, mas quando chegamos ao centro do parque, fomos mortos pela multidão enlouquecida. Outra vez você tentou destruir a máquina, mas provocou um incêndio e morremos queimados. Tentou também argumentar com a velha louca, mas ela pirou de vez e atirou em nós dois. Com pequenas variações, esse dia sempre se repete e a gente sempre se dá mal. E começa tudo de novo.

              A vertigem estava tão forte que precisei sentar no chão, apoiando a cabeça nas mãos. A sensação de  desespero era crescente.

              – Sabe o que é mais estranho...? – continuou o Sabidão – Eu cheguei a acreditar que esse looping temporal pudesse ter sido criado como uma anomalia no espaço-tempo, quando eu acionei a máquina, ou talvez ainda antes, durante um dos experimentos dos irmãos Venganno, mas, agora fico pensando que talvez essa seja a própria natureza da realidade. Uma espécie de simulacro existencial que se repete, por centenas ou milhares de vezes até esgotar todas as possibilidades de permanência.

              – Daí a gente se fode de vez. – concluí.

              – No nosso caso, é bem provável. – concordou o Sabidão – Mas, não há outra coisa a fazer além de continuar tentando mudar algo, até, quem sabe, conseguirmos sair desse ciclo de eterno retorno. Você já leu Nietzsche?

              – Não. – respondi – Mas já vi um filme com aquele cara dos Caça-fantasmas que tinha um lance parecido com isso que você está falando.

              – É O Feitiço do Tempo, com o Bill Murray. – emendou ele – Não é um filme muito bom, mas a realidade daquele personagem era um paraíso se comparada com a nossa.

              – Isso tudo é loucura. – resmunguei, desanimado.

              – Claro que sim. – disse o Sabidão – Tem algum detalhe dessa história que não seja totalmente insano? Veja essa máquina, por exemplo. No começo eu achei que pudesse ser tecnologia alienígena, mas agora estou mais inclinado a pensar que ela possa ter sido criada por pessoas como nós, só que do futuro. Será que não foi alguém lá do futuro que mexeu no passado e acabou criando essas realidades paralelas malucas em que nós estamos? Acho que a existência, como um todo, é algo muito paradoxal.

              – Você também está ficando louco, cara... – falei, levantando com certa dificuldade – Mas não te culpo, porque eu também já me sinto doido pra caralho. Me diz uma coisa: você se lembra de uma dessas realidades alternativas, ou sei lá de que porra você chama isso, que tenha a ver com pregação religiosa, crucificação, ou merdas desse tipo?

              – Não. – disse ele, parecendo realmente surpreso – Por quê? Me fale mais sobre isso.

              Mas, não deu mais tempo de continuar a conversa. Ouvimos o barulho de um carro se aproximando pela estrada que vinha do lado contrário ao Parque.

              – É a velha louca voltando! – gritou o Sabidão – O que vamos fazer dessa vez?!

              – Vou lhe mostrar o que eu vou fazer! – respondi, olhando ao redor.

              Localizei uma pá escorada na parede, perto da janela. Fui até lá, meio cambaleante, a peguei e então me espremi ao lado da porta. Com o dedo entre os lábios, fiz sinal para o Sabidão não falar nada.

              Em seguida, a porta foi aberta e Verônica entrou carregando sacolas de mercado. Rapidamente, me aproximei pelas suas costas e, antes que ela pudesse me ver, desferi um golpe com toda força na parte de trás da sua cabeça. Deu até para ouvir o barulho do crânio se partindo quando foi atingido pela pá.

              Ela desabou de cara no chão e, segundos depois, já havia uma enorme poça de sangue se formando ao redor da sua cabeça. Sem perder tempo, larguei a pá, tirei a bolsa que ela trazia pendurada ao ombro e comecei a revirar lá dentro. Encontrei o pequeno revólver calibre 22 e coloquei na cintura. Em seguida, achei o que estava realmente procurando.

              – Veja! – falei, me sentindo eufórico – Aqui está a chave do seu cadeado. Vou soltá-lo e, enquanto você coloca fogo nesse lugar maldito, eu vou correr até a sala de controle do palco principal da Feira. Se for preciso, vou destruir tudo que tiver lá para impedir que o filme dos Venganno seja exibido. Acho que ainda dá tempo. E depois pronto, estará tudo resolvido!

              Então, enquanto eu soltava as correntes, o Sabidão começou a falar algo, mas eu simplesmente não dei ouvidos ao que ele estava dizendo, porque, de repente, toda a minha atenção se voltou a algo tão macabro que fez com que sentisse o sangue me gelar nas veias.

              Ali do lado, o corpo da Verônica estava se movendo. No começo parecia estar apenas tremelicando, mas logo passou a se sacudir de forma violenta, até ficar virado de barriga para cima. E não foi só isso: a barriga dela começou a pulsar e a crescer, segundo a segundo, como se fosse uma gravidez instantânea.

              – Que merda é essa agora?! – gritei indignado, com a certeza de que algo muito ruim ainda vinha pela frente.

              – Deve ter alguma coisa a ver com aquilo... – disse o Sabidão, com os olhos arregalados, apontando para a parte de cima da máquina esquisita.

              Quando olhei, reparei em algo que até então não tinha percebido: no topo da máquina estava encaixada a pirâmide negra, a mesma que eu já tinha visto das outras vezes. Ela estava começando a vibrar e emitir fachos de luz esbranquiçada.

              – Você ligou a porra dessa máquina?! – perguntei, sentindo o pavor crescer por dentro.

              – Claro que não! – respondeu o Sabidão – Esse negócio está agindo por conta própria. Deve ser algum tipo de ressonância.

              – É sempre essa porra de pirâmide que faz as merdas acontecerem! – resmunguei, já com a intenção de pegar alguma ferramenta e arrebentar aquele objeto dos infernos.

              Só que não deu tempo. O Sabidão me puxou pelo braço e apontou – tão apavorado que não conseguia falar nada – para o corpo de Verônica se contorcendo lá no chão. Em poucos segundos, a barriga já havia crescido tanto a ponto de rasgar as roupas. A pele estava com coloração azulada, com veias e estrias ressaltadas e pulsantes, deixando claro que, se o crescimento não parasse logo, iria simplesmente explodir. E então explodiu. Com um barulho horrível, que eu nem saberia como descrever, a carne se partiu, fazendo voar sangue e outros tipos de coisas nojentas para todos os lados. Um cheiro podre absurdo invadiu o barracão e, imediatamente, eu comecei a vomitar. Isso fez piorar a tontura e cheguei a cair de joelhos. Pensei que iria desmaiar, mas depois de alguns instantes – não sei quanto – comecei a me recuperar um pouco.

              Quando ergui a cabeça, vi o Sabidão imóvel, pálido como uma folha de papel, com os olhos arregalados. Olhei na mesma direção que ele, e novamente achei que ia desmaiar. Naquele exato instante, duas coisas estavam rastejando para fora da barriga destroçada de Verônica. Pareciam vermes, ensanguentados e melecados, só que do tamanho de um gato. As cabeças se pareciam demais com miniaturas de rostos humanos, mas horrivelmente deformados, com dentes pontudos e olhos animalescos. E estavam crescendo. Muito rapidamente.

              O Sabidão não falava nada e nem se movia. Parecia em estado de choque. Eu comecei olhar ao redor, procurando algo que pudesse usar como arma e detonar aquelas coisas, e só então lembrei do revólver que havia pego na bolsa da Verônica. Saquei da cintura e apontei na direção das criaturas, que, naquele momento, já não estavam mais do tamanho de um gato, e sim de uma pessoa. O corpo de cada um daqueles horrores continuava lembrando um verme, só que tinham surgido braços finos e com garras, parecidos com aqueles dos Dillodokers que eu havia visto no vídeo. Como não tinham pernas, as coisas se moviam rastejando, e parecia que o corpo – feito de algum tipo de gosma cinza-esbranquiçada – ia mudando de forma conforme se movimentava. Mas, o pior de tudo eram os rostos deformados, que também pareciam se mover no meio daquela meleca nojenta. Apesar das bocas cheias de dentes pontudos e dos enormes olhos esbugalhados como de algum tipo assustador de peixe esquisito, dava para reconhecer claramente as fisionomias de sujeitos que um dia já foram humanos. Eram os rostos – bizarros e asquerosos – de Walter e Vítor Venganno.

              Do corpo da Coisa-Vítor brotou uma espécie de pênis monstruoso e melequento, de mais de meio metro de comprimento e, com uma daquelas mãos animalescas, ele começou a se masturbar enquanto gritava com uma voz que parecia um guincho de porco: “Foder! Foder!”

              A Coisa-Walter olhou para nós e sorriu, dizendo com uma voz que parecia o som de um trovão: “Que bom que vocês estão aqui para testemunhar!” Ouvi um barulho suspeito e olhei para o lado. O Sabidão havia mijado nas calças.

              O Monstro-Vítor começou a andava na nossa direção, cada vez mais rapidamente. Apertei o gatilho uma, duas, várias vezes, até descarregar a arma. As balas atravessaram a coisa como se fosse um bloco de gelatina. No lugar dos tiros, escorreu gosma, parecendo até que a criatura iria se desmanchar, mas isso durou só alguns instantes, pois logo aquele corpo melequento se refez, anulando os ferimentos.

              Apavorado, comecei a dar alguns passos para trás e puxei o Sabidão comigo, mas ele não se movia, parecia pregado no chão. Sem pensar duas vezes, dei dois tapas fortes no rosto dele e o sacudi com força.

              – Acorda, cara! Reage! Senão essas coisas vão nos matar!

              Isso pareceu ter tido algum feito, pois ele até recuperou um pouco da cor e recuou comigo até o fundo do barracão. Escoradas na parede, estavam mais algumas ferramentas que poderíamos utilizar como armas improvisadas. Peguei uma enxada e entreguei um ancinho nas mãos do Sabidão.

              A Coisa-Vítor estava novamente próxima de nós. Erguemos as ferramentas para nos defender, mesmo sabendo que, provavelmente, teria pouco efeito. Então, o Monstro-Walter se aproximou de repente, agarrou a Criatura-Vítor e, com uma força impressionante, a arremessou para o lado, fazendo com que caísse há vários metros de distância, com um som gosmento.

              – Meu irmão é refém de impulsos reprimidos... – disse o Monstro-Walter, com sua voz cavernosa – Ele não entende que poderá se satisfazer à vontade depois. Agora temos algo mais importante a fazer, para que a nossa apoteose seja completa. E vocês devem testemunhar! Devem cumprir o seu papel de representar a faceta medíocre e mesquinha da humanidade perante o triunfo de uma mente superior!

              A Coisa-Walter rastejou até a máquina e, rapidamente, começou a acionar diversos botões no painel eletrônico com suas mãos asquerosas.

              – Naquela dimensão onde os Venganno foram parar... – cochichou o Sabidão, parecendo pelo menos parcialmente recuperado – Eles devem ter tido suas mentes absorvidas pelos Dillodokers. Agora eles vão usar isso para trazer as outras criaturas para a nossa realidade.

              Então a Coisa-Vítor se aproximou mais uma vez, rastejando em círculos, agitando os braços para o alto e retorcendo seu rosto monstruoso, como se estivesse chorando. “Foder! Comer! Beber! Fumar!”, gritava a coisa com sua voz de porco, como se fosse uma criança mimada fazendo birra.

              Claramente enfurecido, o Monstro-Walter se afastou da máquina e partiu para cima daquilo que um dia havia sido seu irmão, dizendo: “Eu sabia que você não tinha maturidade suficiente para isso!” e o atingiu com um golpe que arrancou metade do seu rosto fora.

              A Criatura-Vítor urrou de dor e raiva enquanto a gosma escura escorria de sua cabeça e imediatamente revidou, arrancando o braço direito da Coisa-Walter. Os dois monstros começaram a se atacar, arrancando pedaços um do outro de forma brutal, mas, poucos segundos depois de uma parte de seus corpos gosmentos ser mutilada, a meleca voltava a se solidificar, moldando o corpo novamente.

              Enquanto as duas coisas brigavam, fazendo voar gosma fedorenta para todos os lados, fiz sinal para o Sabidão me seguir. Poderíamos aproveitar a confusão para tentar fugir, embora não houvesse muita esperança de que lá fora a situação ficaria melhor. Porém, quando tentei passar pelo centro do barracão, o Monstro-Walter percebeu minha movimentação, me agarrou pelo braço e me arremessou de encontro à parede do fundo. Eu voei por alguns metros, bati contra as tábuas e deslizei até o chão sentindo tanta dor que tive certeza de ter quebrado duas ou três costelas. O Sabidão correu na minha direção.

              Enquanto tentava levantar com a ajuda do Sabidão, percebi que a Coisa-Walter havia levado vantagem na luta contra o irmão. Os pedaços da Criatura-Vítor estavam espalhados pelo chão, mas a gosma se movia e ia lentamente se juntando de novo. Com certeza todo o corpo iria se reconstituir mais uma vez, mas, antes disso, o Monstro-Walter abriu uma pequena caixa de madeira que havia sobre a mesa e retirou algo de dentro. Rastejou até os restos do irmão, que se retorciam pelo piso, recitou algumas palavras em um idioma desconhecido e jogou sobre eles um punhado de cristais pretos, que me pareceram idênticos aos do colar que Vítor usava na primeira vez que o encontrei. Assim, os pedaços da Coisa-Vítor derreteram de vez em uma poça de gosma, que logo começou a evaporar até sumir totalmente, não deixando nenhum vestígio sequer no assoalho.

              – É uma pena que sua mente fosse frágil demais para suportar a pressão. – resmungou a Criatura-Walter, antes de voltar a manusear o painel da máquina.

              Sentindo muita dor, consegui ficar em pé, mas não sabia  mais o que fazer. Pretendia perguntar se o Sabidão tinha alguma ideia, mas uma série de gargalhadas chamou nossa atenção.

              O Monstro-Walter ria satisfeito enquanto a máquina começava a emitir um facho de luz que alternava entre o esbranquiçado e o azulado. Logo aquela luminosidade se concentrou formando uma esfera de uns dois metros de diâmetro e, em meio a um som perturbador, as coisas começaram a surgir através dela. Eram várias. Foram saindo da esfera de luz, uma depois da outra. A aparência de cada uma variava. Tinha as que lembravam insetos gigantes, algumas se assemelhavam a lesmas, outras eram bizarras demais até para tentar descrever, mas todas pareciam feitas de gosma e eram igualmente horríveis.

              As primeiras criaturas que chegaram arrebentaram a parede da frente do barracão e desceram pela estrada, em direção à parte central do parque. A maioria das outras seguiu na mesma direção, mas algumas ficaram para trás e, lentamente, começaram a avançar em direção ao Sabidão e a mim.

              – Bem-vindos ao meu Aeon! – gritou a Coisa-Walter, para em seguida emendar uma pavorosa gargalhada que se prolongava e se prolongava, parecendo que iria durar para sempre.

              As criaturas foram nos cercando e não havia para onde correr. Atrás de nós, apenas a janela que dava para o barranco íngreme, um verdadeiro precipício de dezenas de metros de altura, revestido pela mata escura. Uma das coisas esticou um braço melequento, agarrou o Sabidão pelo pescoço e o ergueu no ar.

              – Ainda não foi dessa vez, Sandro... – conseguiu resmungar ele, com o pouco fôlego que lhe restava, parecendo triste e conformado ao mesmo tempo.

              Eu não seria o próximo. Qualquer coisa era melhor do que cair nas garras daqueles vermes nojentos. “Que se foda!”, gritei, um instante antes de atravessar correndo – mesmo com muita dor nas costelas – os dois ou três metros que me separavam da janela e me atirar através dela. Enquanto despencava lá para baixo, ouvia as gargalhadas do Monstro-Walter ficando cada vez mais distantes. O chão, lá no fundo do barranco, se aproximava muito depressa, mas, quando cheguei até ele, ao invés de sentir a dor de me esborrachar de encontro às pedras e raízes das árvores, tive a sensação de passar direto, mergulhando na escuridão vazia do infinito.

 

 



 

 

 

5º Ciclo

 

              Acordei com a minha vó gritando no corredor: “Sandro? Sandrinho! Você não vai na Feira? Já passa das quatro horas da tarde, menino!”

              Quando abri os olhos senti um tipo de tontura e uma leve dor de cabeça.

              Pulei para fora da cama, com o coração disparado. Tudo parecia absolutamente normal na penumbra do meu quarto. Teria sido tudo um pesadelo? Um pesadelo fodidamente realista e assustador, mas apenas isso? Poderia ter sido efeito colateral do remédio experimental? Seria uma reação adversa por ter tomado um monte de cerveja, embora os médicos e a bula recomendassem expressamente que não fizesse isso? Algum tipo de premonição? Ou apenas o início de um novo ciclo, que recuou um pouco mais no tempo?

              Abri a janela e olhei para fora. A tarde estava nublada e ao longe, mais ou menos na direção do Parque de Eventos, havia algumas nuvens escuras que lembravam vagamente o formato de uma espiral, dando ao céu uma aparência estranha e sinistra...       

 

 

Fim...?

 

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25 de set. de 2022

DILLODOKERS - 3º Ciclo

 

3º Ciclo

 

Por André Bozzetto Jr

 

              Quando despertei, o primeiro pensamento que me veio à mente foi: “Morri e cheguei no inferno!”. Com a tontura que senti, caí de joelhos e achei que fosse desmaiar. Na verdade, até torci para que isso acontecesse, mas, como não aconteceu, fechei os olhos com força e tentei tapar os ouvidos para fugir da realidade ao redor, sem resultado.

              Não sei quanto tempo fiquei nessa posição, mas como os terríveis barulhos que insistiam em me atormentar pareciam ficar cada vez piores e mais ameaçadores, tive aquela reação instintiva de tentar fazer algo. Além do choro, dos gritos de dor e desespero, havia também um som diferente de qualquer outro. Era um tipo de zumbido grave e profundo que não parava nunca e parecia vir diretamente do céu.

              Levantei lentamente, tentando achar justificativas para fugir daquele horror em que estava enfiado. “Estou alucinando por causa de um efeito colateral do remédio experimental”. “Bati a cabeça, fiquei em coma e isso tudo é ilusão do meu cérebro sequelado”. “Enlouqueci de vez!”. Tanto fazia. O terror estava ali. Em tudo.

              Eu me encontrava, de novo, diante do palco principal da Feira da Mandioca, ou do que havia restado dele, porque o parque inteiro estava destruído. Vários focos de incêndio eram visíveis, não apenas ali, mas também nas casas da rua próxima à entrada e, aparentemente – pelos clarões e fumaça distantes – até no centro da cidade. Havia cadáveres e pedaços de corpos mutilados por todos os lados. Sangue, tripas e ossos descarnados se misturavam aqui e ali a camadas de algum tipo de gosma escura e nojenta. O fedor que impregnava tudo era tão absurdo que chegava a arder o nariz. Tive ânsias horríveis, mas não cheguei a vomitar nada, o que pareceu piorar a sensação de tontura.

              Quando olhei para cima, vi que, além daquela escuridão anormal, havia fachos de luz avermelhada se espalhando entre as nuvens, como se o próprio céu estivesse pegando fogo.

              Mas, o pior de tudo não era nada disso. O que mais me apavorou foi ver que, em meio a tantos cadáveres, ainda havia muitas pessoas vivas perambulando por todos os lados, só que cada uma delas ou estava matando ou sendo morta por alguém. Avistei ao longe pelo menos dois caras com armas de fogo atirando a esmo em quem quer que estivesse ao redor. Também tinha gente armada com facas ou facões estripando ou esquartejando outros. Mas, a maioria mesmo usava objetos dos arredores como armas improvisadas. Vi o Alceu, da borracharia que ficava perto da minha casa, perseguindo um grupo de crianças e utilizando como porrete uma ripa da cerca de madeira. Poucos metros adiante de onde eu estava, observei – cheio de horror – o velho Sílvio, da padaria, ajoelhado sobre a sua esposa, esmagando a cabeça dela com uma grande pedra enquanto gritava “Amém! Amém!”.

              Olhei para a minha direita e vi vários pedaços de metal retorcido que eram parte da estrutura de sustentação do lonão que cobria o palco principal, mas que, naquele momento, já não era nada além de escombros. Ajuntei uma barra de ferro de pouco mais de um metro de comprimento e senti um impulso quase incontrolável de sair arrebentando as cabeças daqueles que estivessem atacando outras pessoas. Poderia começar pelo velho Sílvio, logo ali na frente. Porém, com uma força de vontade que tirei não sei de onde, consegui manter a lucidez e entender que isso era a influência dos Dillodokers agindo sobre a minha mente, tentando me induzir a fazer parte daquele show de horrores.

              Larguei a barra de ferro e saí caminhando rápido para resistir àquela tentação infernal. Mas, ir para onde? Pensei em subir até os barracões abandonados na parte antiga do parque, onde os putos dos irmãos Venganno faziam suas insanidades. Pelo visto, não restava muito a ser feito, mas, que outra opção havia? Ir para o centro da cidade? Fora de cogitação. Provavelmente estaria ainda pior do que no parque. Voltar para casa? Era melhor nem pensar no que encontraria lá.

              Com o coração apertado, tentei andar rápido, me mantendo afastado dos loucos que atacavam uns aos outros como feras selvagens. Porém, logo a minha atenção se voltou para mais uma cena bizarra no meio daquele caos todo. Perto da estradinha que dava acesso à parte antiga do parque, se encontrava um grupo de umas vinte ou trinta pessoas que parecia indiferente à matança que acontecia ao redor. Estavam todos de joelhos, como se rezando enquanto ouviam as palavras de um homem que discursava e gesticulava sobre um palco improvisado – que nada mais era do que dois engradados de cerveja com uma tábua por cima – tendo ao fundo uma grande cruz também improvisada, feita com partes da estrutura de uma das vendas de doces. Senti um calafrio sacudir o meu corpo quando identifiquei o sujeito. Era o Sabidão. Ele estava sem camisa e, com algum objeto cortante, havia talhado uma cruz no próprio peito, de onde escorria um bocado de sangue. Quase que imediatamente, ele interrompeu sua pregação e ficou me encarando, com olhar alucinado.

              – Vejam! – gritou o Sabidão, apontando para mim e induzindo todos a olharem na minha direção – Ali está o Messias que estávamos esperando! Vamos crucificá-lo para que o seu sangue traga a redenção de nossos pecados!

              Em meio a muitos gritos de “Aleluia!”, algumas pessoas pegaram a cruz improvisada e começaram a trazer na minha direção, enquanto as demais foram me cercando. Eu logo entendi o que aqueles filhos da puta queriam fazer. Mesmo tomado de pavor, comecei a dar socos e chutes para todos os lados, tentando afastar aqueles loucos o suficiente para sair correndo. Por um momento, cheguei a ter esperança de que iria dar certo. Derrubei uns quatro ou cinco na base da porrada, até que senti uma pancada muito forte na parte de trás da cabeça. Fui tomado por uma dor intensa, mas que durou apenas alguns segundos. Depois a escuridão daquele céu estranho despencou lá de cima e cobriu os meus olhos.

 

 

O próximo ciclo inicia em breve...

 

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