20 de out. de 2025

IT: A COISA

 



"A Carne do Medo: Uma Análise Macabra e Metafísica de IT (1990) e Suas Reencarnações Cinematográficas"

Por Clayton Alexandre Zocarato

ATENÇÃO: Este texto contém Spoilers.

            

            No subterrâneo escuro da psique humana, onde a luz da razão hesita em penetrar, habita aquilo que não ousamos nomear.

            E ainda assim, Stephen King o nomeia: IT.

            Não como monstro, mas como conceito, entidade, princípio.

            Uma coisa ancestral que veste os trajes de nossos medos mais primordiais. Na minissérie de 1990, dirigida por Tommy Lee Wallace, somos levados pelas mãos geladas da infância até as cavernas interiores onde o terror mora.

            Já nas refilmagens recentes de Andy Muschietti, It: Chapter One (2017) e Chapter Two (2019), a besta retorna com dentes mais afiados, mas também com maquiagem digital que suaviza, às vezes, a agonia metafísica que a encarnação original sugeria.

            Não é apenas uma história sobre um palhaço que devora crianças.

            É um estudo espectral do medo — não como reação, mas como substância.

            Como matéria psíquica.

            Como herança evolutiva.

          Em Pennywise, interpretado com sardônica majestade por Tim Curry na obra de 1990, a encarnação do horror se faz teatro, pantomima, eucaristia profana. Curry não atua: ele encarna.

            Sua performance pulsa numa cadência quase barroca, onde cada sorriso é uma ferida aberta, cada piada, um sussurro de morte.

            Em contrapartida, Bill Skarsgård nos traz um Pennywise que é o outro: alienígena, parasítico, desprovido do sarcasmo humano que dava ao palhaço original sua monstruosidade grotescamente familiar.

            Skarsgård é um avatar do medo cósmico à la Lovecraft, onde o terror não é tanto o que ele faz, mas o que ele é: uma ausência de compreensão encarnada.

            Mas o que é It, senão um espelho invertido da consciência humana?

            Um inconsciente coletivo que se alimenta do que esquecemos deliberadamente? A cidade de Derry, palco de ambos os filmes, é menos cenário e mais organismo simbiótico.

            Uma cidade que consente com a monstruosidade.

            Uma cidade que esquece. Que nega. Um símbolo junguiano do recalque.

            A criatura desperta a cada 27 anos — número cabalístico, ciclo de Saturno — como uma espécie de retorno do reprimido. Freud sorriria, amargamente, diante dessa repetição mórbida.

            A análise crítica, então, deve se deslocar para além do roteiro, além da fotografia, e alcançar o âmago filosófico do que está sendo proposto.

            O horror aqui é ontológico.

            O medo não vem de fora. Pennywise não é externo — ele é um sintoma. Lacan, em suas espirais labirínticas, diria que o real é insuportável.  O real sem costuras, sem simbolização.

            It é precisamente isso: o retorno do real em forma de trauma coletivo.

            A criatura se alimenta do medo porque ele é a fonte primária de nossa humanidade — não a coragem, não o amor.

             O medo é anterior. É amniótico.

            Não há separações nítidas entre realidade e fantasia nesses filmes.

            A mente das crianças é palco. A infância, aqui, é território maldito. Um lugar onde as barreiras cognitivas são porosas e o inconsciente invade o cotidiano.

            A neurociência contemporânea, ao investigar os mecanismos do medo, fala do papel da amígdala, do hipocampo, das respostas neurovegetativas. Mas nada disso explica o sorriso de Pennywise.

            O terror é mais do que resposta neural: é abismo.

            É o contato com o que não deveria ser tocado.

            As refilmagens tecnicamente brilham, mas carregam consigo um fardo: o de tornar o horror explicável.

            Há flashbacks, explicações, até uma origem quase mitológica para It como entidade cósmica.

            Mas talvez seja justamente na ausência de explicações que o verdadeiro horror reside.

            Em 1990, a produção, limitada pela tecnologia, criava horrores mais sutis — mas por isso mesmo, mais permanentes.

            O medo que não se mostra é o medo que cresce. O medo que se insinua é o que não se esquece.

            Outras obras dialogam com esse mesmo terror ancestral. A Nightmare on Elm Street traz Freddy Krueger como uma figura do inconsciente destrutivo. The Babadook de Jennifer Kent transforma o luto em monstro, evidenciando a ligação íntima entre afeto e assombro.

            Hereditary, de Ari Aster, radicaliza o conceito, trazendo o horror como herança — não genética, mas ontológica.

            It, porém, se distingue porque o horror não é apenas uma consequência, mas uma estrutura. Um fundamento.

            Críticos literários como Harold Bloom, apesar de sua relutância em aceitar King no cânone, reconheceram o poder arquetípico de suas narrativas.

            Camille Paglia, com sua sensibilidade para o dionisíaco e o profano, talvez visse em It um rito de passagem. Um mergulho no horror como revelação.

            O medo, nesse sentido, não é degeneração, mas iluminação. Atravessá-lo é necessário.

            E então chegamos ao fim — ou melhor, ao eterno retorno. Pois It não morre.       Não porque é invencível, mas porque é interno.

            Porque somos nós. O horror psicológico proposto por King e dramatizado nos filmes é uma ontologia do medo: não um monstro a ser vencido, mas um espectro a ser reconhecido. Pennywise dança, sim.

            Mas sua dança é a mesma que Nietzsche viu no abismo. Aquela que nos olha de volta.

            Assim, no silêncio entre os risos do palhaço e os gritos das vítimas, ouvimos algo mais profundo: o eco de nossas próprias infâncias.

            O medo de não sermos amados. O medo de sermos esquecidos. O medo de sermos... reais.       

            E se o medo for, na verdade, um método de preservação do real?

            Uma âncora contra a dissolução?

            Diante de Pennywise, o palhaço dançarino, não é apenas a infância que vacila — é a própria estrutura da identidade.

            Cada criança em It é mais que um personagem: é um arquétipo psicanalítico, um fragmento do que somos ou fomos. Um relicário de traumas.

            Bill Denbrough, com seu luto silenciado pela culpa, representa o trauma fundador: a perda. Seu irmão Georgie é a primeira vítima visível de Pennywise, mas também símbolo do que foi arrancado antes mesmo da linguagem dar conta da dor.

            Na ausência de luto processado, o trauma se cristaliza, e Pennywise se alimenta dessa estagnação. Segundo Freud, o luto é um trabalho. Bill jamais o realiza. Sua gagueira — uma falha no fluxo da fala — é um sintoma direto da impossibilidade de narrar o horror. O trauma o petrifica no tempo. E assim, o monstro volta.

             Porque o que não é dito, retorna. Sempre.

            Beverly Marsh, por sua vez, é o corpo sexualizado antes do tempo, a infância violada pelo olhar incestuoso. Em sua casa, o terror não vem de fora — ele vive ali, no banheiro, nos olhos do pai, nos gritos que não ecoam.

             Pennywise não precisa se esforçar para assustá-la: ele apenas encarna a opressão que já habita o cotidiano.

            A mancha de sangue que jorra do lavatório, vista apenas por Beverly, é o signo da feminilidade negada, da puberdade transformada em pesadelo. O sangue que em outras narrativas representa vida, aqui é puro espanto. Julia Kristeva, em sua teoria do abjeto, escreveria que o sangue menstrual — ou todo sangue fora do corpo — é aquilo que o simbólico recusa. Beverly é abjeta. E portanto, perfeita oferenda ao monstro.

            Eddie Kaspbrak, com seu inalador e hipocondria, personifica a neurose criada pela superproteção.

            Sua mãe é a figura fálica do controle — um superego vivo —, e sua fragilidade física é psíquica: o corpo como palco da mentira internalizada. Pennywise se apresenta a Eddie como doença.

            Como contaminação.

            Como o colapso do corpo — talvez o medo mais arcaico de todos. A neurociência hoje entende que o medo da doença está entre os mais universais. Ele ativa os circuitos de sobrevivência com mais força do que o medo da violência. Porque a doença nos ataca por dentro, assim como faz It.

            Richie Tozier é a máscara do riso. O palhaço que teme o palhaço. A logorreia nervosa de Richie é o mecanismo de defesa contra o vazio. Jung diria: a sombra de Richie é o silêncio.

            E é nesse silêncio que Pennywise espreita. Nas refilmagens, sua homossexualidade reprimida é sutilmente explorada como mais um estrato do medo: o medo de si mesmo. Não há terror mais dilacerante do que olhar no espelho e ver um estranho.

            Mike Hanlon, o guardião da memória, vive o peso da história. Em suas mãos repousa o terror transgeracional. Em Derry, ele é o único negro — o Outro absoluto.          Seu medo é ancestral. É o fogo cruzado da violência racial, da exclusão.

            Pennywise, para Mike, é a voz de um tempo que nunca passa. O monstro o visita não apenas como palhaço, mas como símbolo da supremacia que queima, que lincha, que apaga. E o mais sinistro: Derry consente.

            Ben Hanscom, o garoto gordo, é o poeta da marginalização. Seu medo é o desprezo, a invisibilidade.

            Pennywise, para Ben, é a risada coletiva. O bullying encarnado. O desprezo das massas. Ele é a carne sobre a qual a sociedade projeta seu nojo. A psicologia do medo nos ensina que o riso pode ser instrumento de exclusão. Pennywise ri porque sabe que o riso é arma.

            Esses personagens são, portanto,  feridas abertas. Pennywise não é causa — é consequência.

             Ele aparece onde já havia dor.

            Onde a estrutura da mente já vacilava.

            Onde o medo já havia sido plantado pela cultura, pela família, pela história.

            Na filosofia da mente, o problema do qualia — a experiência subjetiva — é central.

            O que é sentir medo? Podemos mapear os neurônios, observar os neurotransmissores, descrever o circuito neural?

            Mas a experiência do pavor, do arrepio que paralisa, da sensação de ser observado no escuro, permanece além do físico.

             Pennywise, nesse sentido, é um qualia narrativo: um esforço de King para simbolizar o terror puro.

             Não apenas o medo de morrer — mas o medo de saber que se está vivo e que há algo que não se pode compreender.

            É aí que a refilmagem falha, em parte.

            Ao tentar racionalizar It, ao dar-lhe uma origem interdimensional, ao transformar o horror em ficção científica, perde-se o abismo.

            O It de 1990 — com suas limitações visuais e suas atuações teatrais — é mais verdadeiro justamente porque é mais onírico. O terror é mal definido. É sugestão.

            Como nos clássicos do expressionismo alemão (Nosferatu, O Gabinete do Dr. Caligari), o medo nasce do ambiente, da distorção, do excesso de sombra. Pennywise aparece, às vezes, apenas como um balão vermelho. E esse balão é o que nos mata.

            No horror japonês (Ringu, Ju-On), há uma mesma ética do não dito. O medo não é grito, mas sussurro. Em King, e em It, há uma tentativa de conciliar o horror metafísico do desconhecido com a cultura pop americana — o que resulta num híbrido fascinante.

            A estética de It não é apenas assustadora — é perturbadora.

             Porque o monstro tem rosto de festa infantil. Porque o mal vem com confete.

            Mas talvez a questão mais metafísica seja: por que o medo da infância é o mais duradouro?

            Por que tememos o armário, o porão, o palhaço, mesmo depois de adultos?          A neurociência sugere que memórias formadas na infância têm uma carga emocional mais profunda, pois são registradas em um cérebro ainda em formação.

            A plasticidade neural é maior, mas também mais vulnerável. O medo infantil não se apaga: ele se transforma em sintoma. Em escolha de vida. Em fobia adulta.       Pennywise é um trauma que ganhou carne.

            E o mais cruel: quando adultos, os personagens quase esquecem. A mente os protege. E, com isso, também os fragiliza.

            O trauma não lembrado é o mais perigoso. Ele não cicatriza. Ele se esconde. E espera.

            Stephen King nunca escreveu sobre monstros.

            Escreveu sobre pessoas. Os monstros apenas revelam aquilo que os personagens já não podiam esconder.

            A obra inteira de King é um atlas do medo americano: o medo da exclusão (Carrie), do isolamento (The Shining), da perda (Pet Sematary), da loucura (Misery).      Em It, ele reuniu todos os medos numa só entidade.

            Um Deus do horror. Um demiurgo do abismo.

            É por isso que, ao fim, os adultos precisam voltar. Porque aquilo que não enfrentamos nos chama.

            Porque o medo, uma vez plantado, torna-se raiz. E nada mais cresce direito sobre ele. Derry não é apenas uma cidade. É uma metáfora.

            Um lugar dentro de cada um. E Pennywise é o guardião desse espaço.

            Rimos de nervoso. Fingimos não ver. Mas o balão flutua. Vermelho como o sangue. Vermelho como o primeiro grito. Vermelho como aquilo que não se esquece.

            A essência do mal em It não é o monstro em si, mas o ritual silencioso da repetição, da eterna volta ao mesmo ponto de ruptura. Georges Bataille, em seus escritos sobre o sagrado e o profano, apontaria que o horror é uma forma de experiência extática, um “excesso” que quebra os limites da ordem racional e social.

            Pennywise é esse excesso: a irrupção do caos na superfície ordenada da pequena             Derry, onde o sagrado é profanado e o profano se apresenta disfarçado de festa infantil.

             A liturgia do medo, portanto, é um rito que se repete a cada 27 anos, um retorno sacrificial que mantém o equilíbrio entre o conhecido e o insondável.

            Antonin Artaud, com seu Teatro da Crueldade, desafiaria a percepção do espectador para além do simples entretenimento — It é teatro cru, espetáculo do horror que penetra a carne da mente. Tim Curry, no papel original, é Artaud em forma de palhaço: não apenas um personagem, mas uma experiência visceral, um choque.

             A refilmagem, embora tecnicamente refinada, carece desse grito primitivo — é um sussurro digital diante do rugido teatral.

            Em Cioran, o pessimismo radical encontra eco nas sombras de King.

            O mal não é apenas externo; é o abandono de si mesmo, a queda no abismo interior.

             A essência do horror em It é esse desespero silencioso, o reconhecimento de que, por trás das máscaras da infância e da memória, existe um vazio que não se pode preencher — um vazio que é o próprio It.

            Michel Foucault nos recordaria que o poder, o controle social, estão implicados no terror que permeia Derry. O silêncio dos adultos, a conivência da cidade, são formas de poder disciplinar que mantêm It vivo.

            O monstro se alimenta da negação coletiva, da recusa em confrontar o passado e a sombra. É o terror do que a sociedade esconde, e que retorna sempre mais feroz.

            Assim, It é mais que horror — é uma liturgia metafísica, uma dança gótica do medo que nos obriga a olhar para dentro.

            Não para vencer o monstro, mas para reconhecê-lo como parte do que somos.

            O terror psicológico da obra não é apenas o medo do palhaço, mas o medo do abandono, da perda, da rejeição, da morte de nossos próprios eus fragmentados.

            E quando o balão vermelho flutua no ar pesado da noite, quando o riso gélido ecoa no corredor escuro, não é apenas Pennywise que se aproxima.

            É o encontro com nossa própria essência abissal — o sussurro eterno que não pode ser silenciado, pois habita o silêncio.

            Assim, o horror de It é o horror da mente que se revela — o espelho quebrado onde as múltiplas faces do medo refletem o que sempre esteve oculto: que somos feitos não apenas de luz, mas de sombras que dançam, palhaços que riem, e monstros que habitam o silêncio.

            No cerne do abismo em que It mergulha, o medo do escuro e do desconhecido se impõe não apenas como um instinto primitivo, mas como uma força capaz de dissolver os limites entre a vida e a morte, o ser e o nada.

            Aqui, a teoria sociológica de Émile Durkheim sobre o suicídio oferece uma lente inquietante para entender a pulsão autodestrutiva que emerge do medo profundo — não apenas o medo de Pennywise, mas o medo existencial que permeia cada personagem, cada recanto sombrio de Derry.

            Durkheim categorizou o suicídio em quatro tipos — egoísta, altruísta, anômico e fatalista — cada um refletindo uma relação distinta entre o indivíduo e a sociedade.

            Em It, percebemos ecos dessa teoria na trajetória dos membros do Clube dos Otários. O medo que Pennywise insufla, aliado à negligência social e familiar, cria um terreno fértil para o suicídio egoísta: uma alienação do indivíduo perante a coletividade que deveria protegê-lo.

            A infância marcada pela exclusão, pela violência e pelo silêncio, torna-se um cárcere onde o desespero se enraíza.

            Este desespero é musicalmente evocativo em “Fear of the Dark”, do Iron Maiden — cuja atmosfera gótica e sombria parece sintonizar-se com a ansiedade pulsante do desconhecido.

            A música narra a experiência atemporal do temor do escuro, símbolo universal daquilo que não pode ser visto, nomeado ou controlado. “Porque o medo do escuro é algo que eu realmente entendo,” canta Bruce Dickinson, refletindo a inevitável luta contra as sombras internas.

            Assim como as crianças de Derry, todos nós carregamos um “medo do escuro” que é ao mesmo tempo literal e metafórico: o medo da morte, do abandono, do vazio existencial.

            Esse medo do escuro pode ser associado diretamente aos pecados capitais, estruturas morais ancestrais que catalogam as fraquezas humanas diante do desconhecido e do desejo.

            A ira, por exemplo, reverbera nas explosões violentas de Pennywise, bem como na hostilidade da cidade que prefere o silêncio à justiça.

             A inveja se manifesta nas rivalidades infantis, mas sobretudo na comparação dolorosa entre o “normal” e o marginalizado.

            A preguiça, enquanto apatia social, é refletida no consentimento coletivo da população de Derry, que mantém o monstro vivo pelo esquecimento.

            A gula se traduz na voracidade do monstro, na fome incessante pelo medo e pela vida. A luxúria, por sua vez, encontra sombra nas agressões e abusos que Beverly enfrenta, e na sexualidade infantil que é simultaneamente descoberta e reprimida.

            A vaidade e o orgulho, quase ausentes nas crianças, reaparecem na necessidade adulta de negar o passado, de fingir que nada aconteceu.

            Dentro dessa teia, o suicídio surge como um resultado trágico das falhas humanas em lidar com seus próprios demônios.

            Durkheim enfatiza que o suicídio anômico acontece quando a ordem social é perturbada — quando as normas falham, e o indivíduo se vê perdido. It encarna isso em sua máxima expressão: Derry é uma sociedade anômica, em constante negação de sua própria sombra. Pennywise é o espelho do fracasso coletivo, o reflexo de uma ordem social corrompida.

            Sob o prisma da psicanálise, o medo do escuro é o medo do inconsciente — o território onde jazem desejos reprimidos, traumas ocultos e pulsões mortais.

            Freud via o inconsciente como um território selvagem, e Pennywise é sua manifestação externalizada, uma força que não pode ser domesticada pelo ego.

             A música “Fear of the Dark” ecoa essa ideia, pois o escuro é aquilo que o ego tenta evitar, mas que o sujeito deve confrontar para alcançar a integração psíquica.

            No campo da neurociência, estudos indicam que a resposta ao escuro ativa regiões cerebrais ligadas à ansiedade e à vigilância, como a amígdala e o córtex pré-frontal.

            O medo, nesse contexto, é um mecanismo adaptativo, mas quando exacerbado, torna-se patológico. It é a dramatização desse limite tênue, onde o medo se torna criatura e devora a própria mente.

            Portanto, a analogia entre a obra de Stephen King, a teoria de Durkheim, a música do Iron Maiden e os pecados capitais traça um mapa sombrio e intricado do terror psicológico.

             Não se trata apenas de enfrentar o monstro externo, mas de reconhecer que o verdadeiro horror reside na falha humana de integrar suas sombras, seus medos e suas pulsões.

            O balão vermelho flutua, então, como um símbolo não apenas do perigo iminente, mas da necessidade urgente de iluminar o escuro dentro de nós, para que a criança perdida em Derry — e dentro de cada um — não sucumba ao silêncio eterno.

            No âmago da narrativa de It, os laços que unem as crianças do Clube dos Otários são tanto um refúgio quanto um espelho dos conflitos sociais que produzem o medo.     Bill Denbrough, carregando a culpa e o luto não processado, vive sob o peso da anomia — conceito durkheimiano que define o estado de desorientação que surge quando as normas sociais falham.

            Seu sofrimento, silencioso e sufocante, é a personificação do suicídio egoísta e anômico.

            A ausência de apoio social claro e a perda precoce criam um vácuo existencial que Pennywise explora com voracidade metafísica.

            Essa situação reverbera na canção “Fear of the Dark”, cuja letra não apenas narra o medo literal da escuridão, mas sobretudo a angústia existencial da invisibilidade e do isolamento.

            O trecho “I have a constant fear that something's always near” remete diretamente ao estado psicológico dos personagens: um temor perpétuo do que não se pode ver, mas que se sente sempre próximo, penetrando a alma.

            Assim como a escuridão da música, a cidade de Derry é um espaço saturado de ausência de luz — tanto física quanto moral —, onde o mal se esconde e se alimenta dessa penumbra.

            A presença do medo dentro do escuro, carregado de simbolismo, pode ser compreendida como um portal para os pecados capitais, que aqui funcionam como estruturas psíquicas e sociais que alimentam o horror.

            A ira está presente na violência implícita e explícita dos abusos e na fúria das crianças que lutam contra Pennywise.

            A inveja e a vaidade revelam-se nas dinâmicas grupais e na alienação social, enquanto a preguiça traduz o silêncio cúmplice dos adultos, que preferem negar a existência do monstro a confrontá-lo.

             A luxúria e a gula aparecem de maneira distorcida e sombria, em abusos e na fome insaciável do ser monstruoso. Assim, os pecados capitais não são apenas transgressões morais, mas forças estruturantes do medo, manifestando-se no psicológico coletivo e individual.

            A relação entre a teoria do suicídio de Durkheim e a narrativa de It se torna ainda mais evidente quando observamos o comportamento de Mike Hanlon, o guardião da memória.

            Ele representa o elo com a história não resolvida, a consciência social que confronta o esquecimento coletivo.

            O silêncio da cidade e a repetição do ciclo de horror são a encarnação da anomia: a ausência de ordem moral deixa os indivíduos vulneráveis ao desespero e, por consequência, ao suicídio — não necessariamente literal, mas simbólico, como a morte da esperança e da infância.

            Psicanaliticamente, Pennywise funciona como a personificação do “Outro” — aquilo que o sujeito teme e rejeita em si mesmo.

            A repetição do ciclo de horror é o sintoma da neurose coletiva que não se cura.    A repressão do trauma e do medo infantil cria fissuras na psique, gerando um estado de vulnerabilidade constante.

            O retorno do trauma em forma do palhaço indica o fracasso do trabalho de luto e da integração do inconsciente.

            No plano neurocientífico, a resposta amplificada ao medo do escuro ativa circuitos de alerta e defesa que, quando ativados continuamente, desencadeiam ansiedade crônica, fobias e comportamentos autodestrutivos.

            Assim, o suicídio, enquanto ato extremo, pode ser visto como a última tentativa de controlar ou extinguir esse terror interno inescapável.

            Portanto, a obra de Stephen King, ao combinar o horror externo (Pennywise) com o horror interno (medos, traumas, pecados), cria uma narrativa profundamente simbólica que dialoga com múltiplos níveis do sofrimento humano.

            O “balão vermelho”, como sinal visual, é o aviso permanente, a lembrança de que o escuro nunca está vazio, e que os monstros que nele habitam são, em última instância, parte da nossa própria alma fraturada.

            No cerne da experiência humana, o existencialismo revela o indivíduo lançado num universo sem sentido, onde o absurdo é o terreno de fundo da existência. Jean-Paul Sartre e Albert Camus desvelam o paradoxo do ser: a busca por sentido em um cosmos indiferente, onde a morte é a única certeza e a liberdade absoluta traz consigo o peso do nada.

            It encarna esse drama ontológico. As crianças de Derry são seres expostos à angústia primordial: a sensação de abandono, o enfrentamento do nada — simbolizado pelo abismo de Pennywise.

            O palhaço-monstro é o absurdo em forma de criatura, um enigma que não se explica e não se compreende.

             Sua presença não depende de lógica, mas de uma força irracional que devora a esperança e a segurança.

            Bill, com sua gagueira, não é apenas um menino ferido pela perda; é o sujeito existencial que tenta encontrar sentido no caos.

            Sua trajetória é um esforço para afirmar sua liberdade e reconstruir o mundo fragmentado pela morte do irmão.

            Na filosofia sartreana, isso é a “náusea”: o enfrentamento da contingência que abala a essência.

            Beverly, presa a um ambiente abusivo, vive o horror da facticidade: a condição dada, cruel e inescapável.

             Sua luta representa a afirmação da liberdade diante do determinismo social e familiar, um gesto de revolta contra o destino imposto.

            Eddie, com seu medo da doença e da fragilidade, é o sujeito que busca no corpo um refúgio, mas descobre que o corpo é também um cárcere.

            Sua neurose é a manifestação do conflito entre o desejo de segurança e a inevitabilidade da vulnerabilidade humana.

            A angústia do medo do escuro, a vulnerabilidade exposta pela música “Fear of the Dark”, é a expressão musical do absurdo que permeia o texto.

            A sombra não é apenas ausência de luz, mas a metáfora do vazio existencial que oprime o sujeito.

            O retorno constante do monstro a cada 27 anos é o eterno retorno nietzschiano, um ciclo de sofrimento que desafia a liberdade de ruptura.

            Derry, assim, é o espaço onde o indivíduo é confrontado com a repetição do trauma, o qual só pode ser enfrentado pela coragem de reconhecer e transcender o medo.

            Sob a lente da psicanálise, esse enfrentamento é o trabalho do ego que deve integrar as sombras do inconsciente, representar a consciência e construir a narrativa do self. Pennywise é o id primitivo, a pulsão da morte, o retorno do recalcado.

             A resistência ao monstro é o esforço pela síntese psíquica, pela saúde mental.

            No campo do horror clássico, It dialoga com obras como O Exorcista e O Iluminado, onde o mal toma formas que são reflexos do inconsciente coletivo e individual.

            Ao contrário do terror gore ou do slasher, King propõe um horror metafísico, onde a verdadeira ameaça é o vazio dentro do sujeito, o medo do esquecimento, da morte e da solidão.

            Assim, It não é apenas uma obra de monstros, mas uma meditação profunda sobre o medo como condição existencial.

            A repetição do horror, o balão vermelho, o escuro opressivo — todos são símbolos da luta do ser contra o nada, contra a dissolução do sentido.

            A obra It dialoga com um panteão sombrio de clássicos do terror que exploram o abismo do medo psicológico e a dissolução da identidade diante do inexplicável.

             Em O Iluminado (1980), de Stanley Kubrick, adaptado da obra homônima de Stephen King, a ameaça reside no isolamento e na loucura crescente, como uma espiral de desintegração psíquica e social.

            O Hotel Overlook é um microcosmo de opressão e memória do mal, refletindo a luta interna do protagonista com seus próprios demônios — similar ao modo como Derry se torna um espaço simbólico do trauma coletivo em It. Ambos os filmes enfatizam a angústia existencial, a luta contra forças internas que se manifestam no espaço externo.

            Já O Exorcista (1973), de William Friedkin, aborda o horror pela possessão demoníaca, traduzindo o conflito entre o sagrado e o profano, o corpo e o espírito, em uma batalha metafísica.

             Diferentemente do terror corporal e explícito, a possessão aqui é metáfora para o medo do desconhecido dentro do próprio corpo e alma — uma luta que ressoa com a personificação de Pennywise como um mal primordial que transcende a forma e a razão.

            It amplia essas abordagens ao inserir um monstro que é o produto de um trauma coletivo e individual, um espectro que se alimenta dos medos reprimidos de uma comunidade inteira.

            Aqui, a psicanálise freudiana e lacaniana emerge nitidamente: Pennywise é o “Outro” simbólico que reflete as fissuras do inconsciente e o medo do sujeito do que está além da linguagem e do controle racional.

            Filosoficamente, It se apoia em conceitos de Heidegger sobre o “ser-para-a-morte” (Sein-zum-Tode), onde o medo não é mera reação a estímulos externos, mas uma condição ontológica que revela a finitude do ser.

            O monstro não é simplesmente uma ameaça física, mas o lembrete constante da morte que espera, da aniquilação do ser. Essa perspectiva transcende o terror imediato e se insinua como um horror existencial que dilacera a alma.

            Outro paralelo encontra-se em O Babadook (2014), que explora o luto, a depressão e a repressão de traumas psicológicos através de uma criatura que personifica esses estados emocionais.

            A similaridade com It reside na transformação do medo interno em forma tangível, em espectro, e na necessidade de confrontar essas sombras para alcançar algum grau de cura ou libertação.

            Assim, ao contrário de narrativas que privilegiam o choque ou o grotesco, It privilegia o terror psicológico e metafísico, articulando o medo como uma experiência

            O medo do escuro, presente em It e evocado na música “Fear of the Dark” do Iron Maiden, é um arquétipo do terror psicológico.

             Sob o olhar filosófico, o escuro não é mero fenômeno físico, mas símbolo do desconhecido, do nada, do abismo que confronta o sujeito com sua finitude e ignorância. Heidegger concebe o ser humano como um “ser-no-mundo” cuja existência é definida pelo “ser-para-a-morte” — a consciência da finitude.

            O escuro é a metáfora dessa finitude: um espaço onde a ausência de luz revela a ausência de respostas, a suspensão do sentido.

            Na psicanálise, o escuro é o espaço do inconsciente — vasto, inexplorado, carregado de desejos reprimidos, traumas e medos que o ego evita para preservar a sanidade.

             Freud já apontava que o medo infantil do escuro representa a resistência do ego em lidar com o que está fora de seu controle, fora da consciência.

             Lacan, por sua vez, consideraria o escuro como o “Real” — aquilo que escapa à simbolização, que não pode ser integrado na linguagem, e que provoca a angústia pura.    Pennywise, enquanto manifestação do medo, é a personificação desse Real aterrador: um ser que escapa a qualquer lógica ou narrativa que o ego possa construir.

            A ausência de estímulos visuais ativos o sistema de alerta do cérebro, aumentando a vigilância e a produção de adrenalina — mecanismos que, em situações normais, nos protegem, mas que, quando exacerbados, desencadeiam transtornos ansiosos.

            Essa resposta neurobiológica se materializa no medo visceral dos personagens, cuja exposição prolongada ao escuro e ao desconhecido os empurra para estados de pânico, dissociação e até comportamento autodestrutivo.

            It aprofunda esse estado ao colocar os personagens num ambiente onde o escuro é onipresente — Derry é uma cidade onde o mal se esconde não só fisicamente, mas nas memórias esquecidas e no silêncio social.

            O ciclo de terror se alimenta do medo coletivo, uma neurose social que mantém o monstro vivo.

             A música “Fear of the Dark” serve como trilha sonora simbólica dessa luta interna e externa contra o desconhecido: o medo que não se pode nomear, que não se pode dominar, mas que exige ser enfrentado.

            A analogia com os pecados capitais, especialmente a preguiça e a ira, reforça a dimensão moral e social do medo.

            A preguiça, entendida como apatia e omissão, é a força que permite a persistência do mal — o silêncio cúmplice dos adultos que negam os horrores de Derry.       A ira, como resposta à injustiça e ao sofrimento, pode ser tanto destrutiva quanto emancipadora, ilustrando a luta dos personagens contra o monstro e contra as próprias sombras.

            Este entrelaçamento entre filosofia, neurociência e psicanálise oferece um panorama complexo do horror em It: não um simples susto, mas uma experiência que toca o núcleo do ser, a relação do homem com o desconhecido, com a morte e com seus próprios demônios internos.



11 de ago. de 2025

O RIO INFINITO

 



Presenças fantasmagóricas feitas de nostalgia instantânea espreitam por entre as árvores. Fomos nós quem as atraímos. Ou melhor, nós as criamos. Fizemos isso ao brincar no rio com nossa alegria, nossa espontaneidade infantil, presos na ilusão do agora que só nos deixa ver o presente. Se pudéssemos espiar por detrás do véu da realidade, perceberíamos que os fantasmas somos nós mesmos, lá na frente, no futuro, olhando para trás e sentindo saudades do passado. Lembrando do que éramos... e já não somos mais.



9 de ago. de 2025

BALA DE PRATA


 

“Bala de Prata: O Horror, o Absurdo e a Estética do Medo na Obra de Stephen King”

Por Clayton Alexandre Zocarato

ATENÇÃO: Este texto contém Spoilers.

 

            Em meio ao vasto universo literário de Stephen King, Cycle of the Werewolf (1983), posteriormente adaptado para o cinema como Silver Bullet (1985), surge como uma obra aparentemente simples, marcada por traços clássicos do horror: o lobisomem, a cidadezinha americana isolada e o herói improvável.

             No entanto, por trás da trama sobrenatural e do terror explícito, há uma rede densa de significados sociais, morais e existenciais que evocam os grandes dilemas da condição humana.

            Este artigo propõe uma leitura profunda da obra, explorando-a não apenas como narrativa de horror, mas como alegoria do mal cotidiano, do pânico social e do colapso da verdade em tempos de medo.

            O texto parte da comparação entre o livro ilustrado de King, concebido inicialmente como um calendário visual com narrativa episódica, e sua adaptação fílmica dirigida por Dan Attias, com roteiro do próprio autor.

            Com base em teorias literárias e filosóficas, pretende-se lançar luz sobre o modo como Bala de Prata reflete o medo como experiência estética e existencial.

            Tomando como pano de fundo o pensamento de Albert Camus, especialmente sua concepção do suicídio como dilema filosófico fundamental, além das reflexões de Giorgio Agamben sobre o estado de exceção e a suspensão da normalidade, o artigo argumenta que o verdadeiro horror na obra não reside no lobisomem, mas na fragilidade das estruturas morais, sociais e religiosas diante do irracional.

            Além disso, serão mobilizadas as contribuições de Noël Carroll acerca do horror como arte do impensável, bem como referências à música, à estética gótica e à arte obscura como instrumentos de intensificação da experiência do medo.

            Por fim, a análise psicológica dos personagens — sobretudo do jovem Marty Coslaw, da irmã Jane, do Tio Red e do Reverendo Lowe — revelará como a narrativa explora não apenas o enfrentamento do monstro externo, mas também os conflitos internos de identidade, responsabilidade e fé.

            Ao longo do texto, argumenta-se que Bala de Prata opera como uma narrativa de horror existencial, na qual o lobisomem é apenas o catalisador de uma reflexão mais ampla sobre o sentido da vida em tempos de escuridão — um tema que ressoa profundamente com a tradição filosófica do absurdo, da verdade impossível e da luta contra o esquecimento.

            A ambientação de Bala de Prata em uma pequena cidade fictícia do Maine, Tarker's Mills, não é mero cenário — é peça essencial da construção simbólica da narrativa.

            Stephen King sempre foi hábil em transformar espaços aparentemente banais em epicentros do sobrenatural e do grotesco.

          Neste microcosmo social, o terror surge não apenas do exterior monstruoso, mas da desconfiança, da paranoia e da fragilidade comunitária. Assim, o lobisomem é tão somente o catalisador de um colapso mais profundo: o da ordem civilizada. O horror de King é, antes de tudo, um horror social.

            Em Bala de Prata, esse aspecto se revela com clareza quando os habitantes da cidade, tomados pelo medo diante dos assassinatos mensais, abandonam rapidamente qualquer senso de racionalidade ou justiça. O pânico leva à formação de milícias improvisadas e a uma caça ao monstro que termina em tragédia.

            Essa reação social remete ao conceito de “estado de exceção”, conforme teorizado por Giorgio Agamben (2003), em que a suspensão das leis e das garantias civis, em nome da sobrevivência, evidencia a vulnerabilidade da democracia diante do medo irracional. Tarker’s Mills se transforma, assim, em um laboratório social onde o medo legitima a barbárie. Esse processo não é exclusivo da ficção.

            O pânico moral gerado por eventos inexplicáveis ou traumáticos foi amplamente observado em contextos históricos reais — desde as caças às bruxas puritanas do século XVII até as histerias de segurança do século XXI.

            King, ao situar sua narrativa em uma cidade fictícia mas culturalmente reconhecível, dialoga com essa tradição norte-americana do medo coletivo.

            Tarker’s Mills é ao mesmo tempo qualquer cidade e cidade nenhuma: arquétipo da comunidade que desmorona sob o peso do irracional.

            Além disso, a sua narrativa se desenvolve em um ciclo mensal, vinculado às datas festivas e estações do ano, o que sugere uma crítica ao cotidiano ritualizado das sociedades ocidentais.

Cada mês é marcado por uma celebração tradicional (Ano Novo, Dia dos Namorados, 4 de Julho), mas também por um assassinato. A violência interrompe a normalidade de maneira sistemática, quase ritual, insinuando que o terror está intrinsecamente ligado à estrutura do tempo social. O horror, portanto, não é um evento fora da ordem: ele é constitutivo dela. As instituições tradicionalmente são tidas como fontes de bem: a religião, a família, a autoridade.

            O monstro é o Reverendo Lowe — um pastor, símbolo da moralidade e da espiritualidade, que esconde sob a batina um instinto bestial. Este desvelamento ecoa a crítica de Friedrich Nietzsche ao cristianismo como repressão do instinto: quando não sublimado com consciência, o instinto retorna com violência. King, como narrador moderno, desvela a “vontade de poder” mascarada pela retórica da fé.

            Assim, Bala de Prata não é apenas uma história sobre um lobisomem: é um retrato simbólico da decomposição de uma comunidade, da falência das instituições diante do medo, e da tênue linha entre civilização e selvageria.

            Diferentemente de grande parte da produção de Stephen King, Cycle of the Werewolf nasceu de uma proposta editorial incomum: um calendário literário com doze capítulos curtos, um para cada mês do ano, acompanhado por ilustrações de Bernie Wrightson — renomado artista gráfico especializado em horror e ficção gótica.

            A obra, publicada em 1983 pela Land of Enchantment Press, representa um híbrido entre o conto ilustrado e o romance episódico, abrindo espaço para discussões sobre forma, ritmo e o papel da imagem na construção do medo.

            Essa estrutura não convencional rompe com o paradigma do romance tradicional ao priorizar a fragmentação temporal. Cada capítulo é relativamente autônomo, centrado em uma morte ou evento sobrenatural específico, seguindo o ciclo lunar — elemento simbólico por excelência da transformação do lobisomem.

            A segmentação narrativa remete ao modelo do folhetim, ao diário pessoal ou mesmo ao compêndio de lendas locais, o que acentua o tom mitológico e ritualístico da história.

            O horror, nesse caso, ganha um caráter cíclico, quase natural, como uma estação que retorna inevitavelmente — ideia próxima da concepção trágica do tempo em pensadores como Mircea Eliade, para quem o mito e o rito se baseiam na repetição de um tempo primordial.

            A escolha da forma ilustrada também é significativa. As imagens de Wrightson não servem apenas como adornos visuais, mas como dispositivos simbólicos que antecipam, intensificam ou mesmo contradizem o texto.

            A ilustração no horror tem papel ambíguo: ao mesmo tempo em que revela, limita a imaginação; ao visualizar o monstro, o torna mais concreto, porém menos subjetivo.

            Em termos estéticos, essa tensão entre texto e imagem aproxima Cycle of the Werewolf do conceito de “obra aberta”, proposto por Umberto Eco (1962), em que a interpretação é negociada entre diferentes camadas de significação.

            Quando transposto para o cinema como Silver Bullet (1985), o texto perde essa segmentação episódica. O roteiro adaptado por King opta por um arco narrativo contínuo e mais tradicional, com início, clímax e desfecho claros.

             O protagonista Marty ganha protagonismo desde o início, e a revelação do lobisomem ocorre de maneira mais explícita, o que altera a estrutura do suspense original.

            Em termos de ritmo, o filme substitui o tempo ritual do calendário pelo tempo dramático do cinema clássico, onde a progressão linear é privilegiada em detrimento da recorrência simbólica.

            No entanto, essa mudança não enfraquece a obra — apenas a desloca de um registro mitológico para um registro narrativo mais acessível, voltado ao público popular dos anos 1980. A transposição de meios (do impresso ilustrado ao cinema) também mostra como o horror pode ser adaptado sem perder sua essência: o medo não reside apenas na imagem ou no texto, mas no espaço entre ambos, no não dito, no que escapa à representação.

            Por fim, é importante destacar como essa forma fragmentada de Cycle of the Werewolf se insere na tradição do romance moderno e pós-moderno.

            Autores como Italo Calvino e Julio Cortázar já haviam experimentado formas de narrativa não lineares ou modulares, sugerindo uma ruptura com a causalidade clássica do romance burguês.

            Em King, embora o conteúdo ainda seja acessível e popular, a forma traz inovações que o aproximam dessa linhagem mais experimental — revelando, mais uma vez, sua sofisticação disfarçada sob o verniz do gênero.

            A narrativa de Bala de Prata, em suas versões literária e cinematográfica, pode ser compreendida não apenas como veículo de entretenimento ou suspense, mas como um campo fértil para a reflexão filosófica sobre a condição humana.

            O medo, aqui, não é mero recurso retórico: é experiência estética, ética e metafísica. Para entender como o terror operado por Stephen King ultrapassa os limites do gênero, é necessário recorrer a filósofos e teóricos que pensaram o horror como dispositivo de pensamento — entre eles Noël Carroll e Albert Camus.

            Em The Philosophy of Horror (1990), Noël Carroll defende que o horror, enquanto gênero, opera por meio da violação das categorias ontológicas do mundo ordinário. Os monstros do horror — vampiros, zumbis, lobisomens — são “anômalos”, pois misturam categorias normalmente separadas (vida/morte, humano/animal, sagrado/profano). Isso os torna cognitivamente impuros, provocando o “assombro cognitivo” que é a base estética do gênero.

            O lobisomem de Bala de Prata é exatamente isso: uma figura de fronteira. O Reverendo Lowe, enquanto homem, é símbolo da ordem, da ética religiosa, da palavra; como monstro, é puro instinto, violência cega, destruição.

             A coexistência de ambos os polos num só ser é o que o torna esteticamente perturbador. Carroll argumenta que a força do horror reside justamente na revelação dessas fronteiras instáveis da identidade: somos, todos, monstros potenciais.

            Além disso, Carroll observa que o horror trabalha com uma forma paradoxal de prazer estético: o espectador teme e se repulsa, mas deseja continuar.

             A ambivalência é constitutiva da fruição do horror, o que o aproxima do sublime kantiano — o prazer misturado ao temor diante do que excede os limites do racional.

            A estética do medo, nesse sentido, torna-se uma pedagogia do limite humano: ensina-nos a conviver com o que não podemos controlar.

            Mas Bala de Prata também dialoga com questões existenciais mais profundas.     Em O Mito de Sísifo (1942), Albert Camus afirma que há apenas uma questão filosófica realmente séria: o suicídio. Diante do absurdo da existência — a tensão entre o desejo humano de sentido e um mundo indiferente — surge a pergunta radical: vale a pena continuar vivendo?

            Em Bala de Prata, essa questão se projeta na figura de Marty Coslaw, o menino paraplégico que, apesar de sua limitação física, decide enfrentar o mal sozinho, arriscando a própria vida.

            Marty recusa o niilismo passivo e opta, como o Sísifo camusiano, pela revolta consciente. Mesmo quando ninguém acredita nele, mesmo quando o lobisomem se revela invulnerável, ele insiste em agir.

            Sua bala de prata, fabricada artesanalmente pelo Tio Red, torna-se símbolo da decisão existencial de resistir — mesmo quando a vitória parece improvável.

            Por outro lado, o próprio monstro carrega uma sombra de absurdo. O Reverendo Lowe nunca tem seu motivo plenamente explicado. Por que um pastor mata inocentes nas noites de lua cheia? King evita psicologismos fáceis e não oferece justificações morais.

             O mal simplesmente é. Tal como o absurdo camusiano, ele não pede compreensão — apenas confronto. A reação dos habitantes de Tarker’s Mills — negação, histeria, linchamento — evidencia a recusa da comunidade em aceitar esse real impensável.

            A resistência de Marty pode, assim, ser vista como uma forma de “moral do absurdo”, no sentido camusiano: agir sem ilusão, sabendo que o mundo não tem garantias, mas agindo mesmo assim. Sua coragem não é heroica no sentido clássico, mas trágica — ele age porque não há ninguém mais para agir. O medo, em Bala de Prata, não é apenas temor pelo corpo, mas inquietação pela verdade.

            Ao perceber que o mal vem de onde menos se espera — da igreja, da autoridade, da palavra —, os personagens são forçados a rever suas crenças mais básicas.

             A figura do lobisomem representa, então, a verdade nua e crua do humano: não há um centro moral seguro. Não há redenção automática. O bem não é garantido por status, fé ou função social. Essa verdade, no entanto, é insuportável — por isso, o medo.

            Nesse ponto, a narrativa dialoga com a crítica de Slavoj Žižek ao “real traumático” — aquilo que o sujeito não pode simbolizar, mas que insiste em retornar. O lobisomem é justamente esse real: a violência reprimida, o instinto negado, o mal que todos fingem não ver. Quando Lowe é desmascarado, não há catarse redentora — apenas o reconhecimento tardio daquilo que sempre esteve ali.

            O horror sempre esteve profundamente vinculado à arte. Desde as gravuras expressionistas de Goya até os filmes de terror dos anos 1980, passando pela literatura gótica e as bandas de darkwave e metal extremo, a “arte obscura” opera como uma forma singular de acessar as zonas limítrofes da experiência humana: morte, abjeção, loucura, desespero, transgressão.

             Bala de Prata se inscreve nesse imaginário não apenas por sua narrativa, mas por seu envolvimento com os códigos estéticos dessa tradição obscura.

            No filme Silver Bullet, a trilha sonora composta por Jay Chattaway utiliza recursos típicos do horror da década de 1980: sintetizadores, cordas tensas, efeitos pontuais de dissonância.

            A música aqui não apenas acompanha, mas guia o medo, antecipando o aparecimento do lobisomem e criando um campo sonoro de ansiedade constante.

            A trilha transforma o ordinário (uma escola, uma casa, uma floresta) em território ameaçador — função típica da estética sonora no horror.

            Esse tipo de ambientação musical pode ser comparado à tradição do terror gótico sinfônico, presente em obras como a trilha de O Exorcista (com o tema icônico Tubular Bells de Mike Oldfield) ou o trabalho coral de Jerry Goldsmith em The Omen (com a faixa Ave Satani, uma missa negra cantada em latim).

            Ambas as trilhas operam por meio de um contraste entre beleza e ameaça, criando uma “estética do sublime sombrio”, na qual o medo é belo — e o belo, profundamente inquietante.

            Além disso, o imaginário do lobisomem e da transformação bestial está fortemente presente na música popular e no rock desde os anos 1970.

            Bandas como Black Sabbath, Bauhaus, Fields of the Nephilim, Type O Negative e, mais recentemente, Ghost exploram temas de licantropia, heresia, morte e danação com uma estética sonora e visual profundamente marcada pelo simbolismo gótico.

            Essas manifestações sonoras compõem o pano de fundo cultural sobre o qual Bala de Prata se insere — tanto como representação quanto como resposta.

            As ilustrações de Bernie Wrightson para a versão impressa da obra também são fundamentais na construção da atmosfera obscura.

            Wrightson, cofundador da revista Swamp Thing e colaborador de clássicos do horror gráfico, trabalha aqui com contrastes de sombra e luz, com figuras deformadas, olhares vazios e sangue dramatizado.

             O lobisomem nunca aparece em sua forma total — há sempre algo oculto, fragmentado, sugerido — o que se alinha à tradição do “horror do não visto” (ou do “impensável”), discutido por Lovecraft e retomado por Carroll.

            Wrightson inscreve a narrativa no universo do grotesco clássico, no qual o belo e o monstruoso convivem em tensão.

            Segundo Mikhail Bakhtin, o grotesco não é uma aberração estética, mas uma forma de romper com a ordem clássica do corpo fechado, da beleza harmoniosa. O corpo monstruoso — aqui, o do lobisomem — é aberto, transbordante, indeterminado. Ele encarna a crise da forma, o colapso da identidade, a falência da categoria.

            Literariamente, Bala de Prata se filia a uma linhagem de obras que abordam o mal como força insidiosa, muitas vezes indetectável, que se infiltra na banalidade.

             Há ecos aqui de obras como Dr. Jekyll & Mr. Hyde, de Robert Louis Stevenson, onde a monstruosidade é interna, latente, parte indissociável do humano.

            Também ressoa o universo de O Médico e o Monstro em que a forma humana se transmuta em besta — metáfora da cisão ética do sujeito moderno.

            Mais recentemente, autores como Clive Barker, Anne Rice e Ramsey Campbell exploraram o horror não como elemento externo, mas como pulsão interna — do desejo, da fé, da identidade.

            Stephen King, com Bala de Prata, situa-se nesse mesmo campo: a figura do reverendo Lowe como lobisomem não é aleatória, mas profundamente simbólica. Ele representa a falência da fé como refúgio moral, e o horror de descobrir que o monstro não é o outro, mas aquele em quem mais confiamos.

            A poética do obscuro, nesse sentido, é também uma poética da dúvida, do colapso da verdade e da ambiguidade ética.

            Como afirma o filósofo Edgar Morin, o pensamento complexo nasce da incerteza — e o horror é, talvez, a ficção que melhor dramatiza essa incerteza essencial da existência.

            Uma das maiores forças narrativas de Bala de Prata reside na construção dos seus personagens. Longe de funcionarem apenas como arquétipos ou veículos da ação, eles encarnam dilemas morais, afetivos e existenciais que ressoam com o universo trágico e com os conflitos do homem moderno.

            Stephen King, mesmo em uma narrativa breve, consegue articular uma psicologia profunda e ambígua — revelando como o mal não é externo ou abstrato, mas algo que irrompe dentro da própria alma, da comunidade e do cotidiano.

            Marty é, à primeira vista, o improvável herói: um menino de 11 anos, paraplégico, dependente dos outros, frequentemente tratado como frágil ou infantilizado.

            No entanto, sua limitação física não o impede de agir, investigar e, finalmente, enfrentar o mal.

             Ao contrário, sua condição o transforma em alguém que observa mais, que suspeita do que os outros ignoram, que sente os sinais do medo com mais intensidade.

            Sua luta contra o lobisomem pode ser lida como uma metáfora do enfrentamento da própria impotência — não apenas física, mas existencial.

            A figura do herói em Marty é camusiana: ele não luta porque tem garantias de vitória, mas porque recusar-se a agir seria entregar-se ao absurdo.

            Como Sísifo, ele empurra a pedra montanha acima todos os dias — mesmo sabendo que ela pode rolar de volta.

            Marty encarna aquilo que Albert Camus chamava de “o homem revoltado”: aquele que, diante do absurdo da vida, não opta pelo suicídio ou pelo desespero, mas por afirmar sua liberdade por meio da ação consciente.

            Sua bala de prata não é mágica: é construída, com esforço, com convicção. É a arma ética contra um mundo indiferente. Jane, a irmã de Marty, representa o olhar cético, mas humano.

            No início, ela oscila entre o desprezo e o afeto contido pelo irmão. Sua jornada é menos heroica no sentido clássico, mas igualmente densa: ela precisa superar o medo da responsabilidade e a tentação da negação. Quando decide ajudar Marty, ela também rompe com a passividade social que caracteriza muitos habitantes da cidade.

            Psicologicamente, Jane é a figura da testemunha — e, portanto, do peso moral de quem viu o horror e optou por agir. Seu crescimento é silencioso, mas fundamental: ela deixa de ser adolescente ressentida para se tornar sujeito ético.

            Isso evoca a figura do "testemunho" em Primo Levi e Hannah Arendt: ver, entender, falar — mesmo quando ninguém quer escutar.

         Red é o adulto fracassado: alcoólatra, divorciado, escarnecido pela família, símbolo da decadência masculina americana. No entanto, em meio ao colapso comunitário, ele se torna a figura que, paradoxalmente, restaura a ordem.

             Sua ajuda na construção da bala de prata e na luta final revela uma ética subterrânea — não oficial, não moralista, mas autêntica. Red não é bom por dever; é bom por lealdade.

            Sua marginalidade o torna mais sensível ao desespero das crianças — e talvez mais disposto a acreditar no impossível. Red é a figura do adulto imperfeito, mas que ainda carrega a chama da coragem. Sua redenção não se dá por conversão ou pureza, mas por ato. Como o cowboy decadente dos filmes de faroeste, ele ressurge na hora certa.

            O Reverendo Lowe é o coração sombrio da obra. Como homem de fé, ele representa a autoridade, a confiança, a esperança. Como lobisomem, ele destrói tudo isso. Sua figura encarna o mal moral: não aquele que age por impulso cego, mas o que racionaliza, oculta, justifica. Quando finalmente confrontado, ele diz: “Deus me fez assim.”

            Essa fala, ambígua e perversa, lembra o conceito de “banalidade do mal” de Hannah Arendt: o mal não como fúria demoníaca, mas como justificativa rotineira. Lowe mata crianças e inocentes, mas não se vê como monstro. Ele acredita estar agindo dentro de uma lógica. Essa perversão da razão é o que o torna aterrador.

            Psicologicamente, ele representa a cisão interna do sujeito moderno: a ruptura entre aparência e desejo, entre papel social e pulsão. Ele vive no autoengano — e é essa hipocrisia que permite sua continuidade.

            Diferentemente de outras obras de terror em que as vítimas servem apenas como carne para o monstro, Bala de Prata dedica atenção especial a suas vítimas — muitas das quais são personagens com conflitos morais profundos:

            Arnie Westrum, o maquinista bêbado da ferrovia, é um símbolo do sujeito decadente, esquecido pela sociedade — morto em sua solidão;

            Stella Randolph, a mulher que comete suicídio ao saber da traição amorosa, revela a fragilidade da psique diante da solidão e do escárnio social — e é morta brutalmente antes mesmo de morrer por suas próprias mãos;

            Brady Kincaid, o melhor amigo de Marty, é a vítima mais chocante: seu corpo desmembrado é a lembrança de que o mal atinge o que há de mais puro;

            Milt Sturmfuller, o pai agressor doméstico, é morto num aparente ato de justiça selvagem, levantando a questão: até que ponto o monstro pune os “imorais”? Existe uma ética no horror?

            Essas vítimas revelam que o mal não escolhe. Em alguns casos, parece punir o injusto; em outros, massacra inocentes. Isso reforça a ideia do mal como força irracional, como no existencialismo trágico de Dostoiévski ou de Camus: o sofrimento não tem explicação — ele apenas é.

             O horror, nesse sentido, opera como revelação da condição humana: frágil, contingente, absurda.

            Bala de Prata, sob sua aparência de narrativa pulp de horror sobrenatural, revela-se, à luz de uma análise filosófica, estética e literária, uma obra de rara complexidade e densidade simbólica.

            Stephen King, ao construir uma trama centrada em um lobisomem assassino numa cidadezinha americana, convoca não apenas o imaginário do terror clássico, mas também questões fundamentais da condição humana: o medo, o absurdo, a responsabilidade moral, a fragilidade das instituições e o colapso da verdade.

            A estrutura fragmentária do livro ilustrado, com suas doze cenas mensais de violência e tensão, cria uma atmosfera cíclica e ritualística que remete aos mitos ancestrais do mal recorrente e da luta eterna contra as forças do caos.

            A adaptação cinematográfica reorganiza essa estrutura, mas conserva o núcleo filosófico: a impotência diante do inominável e a insistência, ainda assim, em resistir.

            Ao longo da análise, vimos como pensadores como Noël Carroll, Albert Camus, Giorgio Agamben e Hannah Arendt ajudam a iluminar os dilemas éticos e existenciais que percorrem a obra.

            O lobisomem não é apenas um monstro: ele é o símbolo da instabilidade das categorias morais, da desintegração da autoridade ética, da irrupção do irracional no seio da racionalidade. Em Lowe, o pastor-monstro, reconhecemos o horror último: o mal travestido de bem. Os personagens, por sua vez, são mais do que meros coadjuvantes da ação.

            Em Marty, encontramos o herói trágico moderno — limitado, desacreditado, mas disposto à ação ética; em Jane, a testemunha silenciosa que encontra sua voz; em Red, o adulto falido que reencontra sentido no cuidado e na coragem.

            E nas vítimas, identificamos a pluralidade dos destinos humanos — uns fadados à injustiça, outros ao abandono, mas todos vítimas de uma violência que não distingue, que não justifica.

            A estética do medo, por sua vez, articula-se não apenas no texto, mas nas imagens, na música, no ritmo do horror.

            A obra se insere na tradição da arte obscura, ao lado de autores como Stevenson, Poe, Barker e do universo visual de Bernie Wrightson e do som perturbador do dark ambient e do rock sombrio. Nesse campo estético, o medo não é fuga da realidade — é sua intensificação.

            Por fim, Bala de Prata mostra que o verdadeiro terror não é o monstro lá fora, mas a possibilidade de que ele esteja dentro de nós, ou de que ele seja justamente aquele a quem confiamos nossos valores.

            O horror, aqui, cumpre sua função mais nobre: revelar as falácias da segurança, as ilusões da fé cega, e nos devolver ao mundo em sua crueza.

            Como escreve Camus: “O absurdo nasce desse confronto entre o apelo humano e o silêncio irracional do mundo”.

            Em Bala de Prata, King nos oferece exatamente isso: um mundo que não responde, mas que exige — ainda assim — ação, escolha e coragem.