10 de set. de 2022

DILLODOKERS - 1º Ciclo

 

1º Ciclo

 

Por André Bozzetto Jr


              Acordei com a minha vó gritando no corredor: “Sandro? Sandrinho! Você não vai na Feira? Já passa das quatro horas da tarde, menino!”

              Quando abri os olhos senti um tipo de tontura e uma leve dor de cabeça. Sabia que não devia ter tomado cerveja na hora do almoço. Eu fui diagnosticado com TOC ainda na infância e, você sabe, há uns vinte anos atrás não se tinha tantos recursos como agora, a medicina não era tão avançada. Daí a minha mãe me inscreveu num programa de voluntários para testar medicamentos psiquiátricos e eu tenho tomado vários tipos de remédios diferentes desde então. Inclusive, faz duas semanas que comecei a tomar um novo. Eu me mantive no programa mesmo depois de ter completado 18 anos, porque os remédios realmente me ajudam bastante. Nas vezes em que tentei ficar sem tomar nada, acabou não dando certo e me senti muito mal. Só que os médicos sempre disseram que não deveria ingerir bebida alcoólica. Os últimos, por sinal, foram taxativos em relação a esse novo medicamento. Mas, porra, todo mundo sempre bebendo e eu nada?! Esse fim de semana está cheio de parentes de fora hospedados aqui em casa porque está tendo na cidade a tradicional Feira da Mandioca que ocorre a cada dois anos e sempre vêm gente de tudo quanto é lugar para participar. Daí o meu pai fez um baita churrasco de meio-dia e eu tomei sim umas cervejinhas porque também não sou de ferro.

              Depois do banho a dor de cabeça passou e a sensação de vertigem pareceu diminuir. Quando cheguei na cozinha, a mulherada estava alvoroçada, preparando a janta para aquele bando de parentes. Andando de um lado para o outro – e falando todas ao mesmo tempo – estavam a minha mãe, minha avó, duas tias e a Raiana. No caso, a Raiana é a minha esposa. Eu sei, tanto ela quanto eu temos apenas 22 anos e seríamos bem novos para casar, tendo em vista que hoje em dia o pessoal casa cada vez mais tarde, mas decidimos depois de ela ter engravidado. Sabe como é, famílias tradicionais e tal... Quando ela perdeu o bebê, apenas duas semanas depois do casamento, muita gente disse que seria o fim da nossa relação, mas não foi nada disso que aconteceu. Além de muito gata, a Raiana é uma guria muito gente fina, que sempre entendeu os meus problemas e me apoiou. Nós nos damos bem pra caralho. Me sinto grato em ter ela na minha vida.

              – Você não queria assistir a Mostra Cultural? – me perguntou ela, passando por mim com uma travessa cheia de panquecas.

              – Quero sim. – respondi.

              – Então vai logo. Já deve estar começando.

              – Você não vai comigo?

              – Vou depois, com os seus pais. Agora preciso ajudar a organizar as coisas por aqui.

              Nesse ano alguém teve a ideia de fazer uma Mostra Cultural – ou Show de talentos, algo assim – em pleno sábado de tarde, no palco principal da Feira. Com apresentações de corais, grupos de dança, cantores locais e coisas desse tipo. Mas o que todo mundo estava curiosíssimo para assistir era um curta-metragem amador feito por uns garotos do Ensino Médio alardeado na divulgação do evento como “O primeiro filme inteiramente produzido na cidade, com equipe e elenco locais”. Na verdade, a curiosidade era mais em tom de zoação, porque o pretenso roteirista e diretor do filme era um garoto chamado Vítor Venganno, um cara esquisito, de 17 ou 18 anos, que anda sempre vestido de preto, com brinco e cabelo comprindo, do tipo que todo mundo tira onda e vive debochando. Ele sempre andou por aí com mais dois ou três caras do mesmo estilo dele, do tipo que passa o dia falando sobre bandas de metal pesado e filmes de terror, mas que não devem ter comido mulher nenhuma até hoje.

              – Você vai assistir o tal filme daqueles retardados? – perguntou o Samuel, meu irmão, entrando na cozinha em companhia do nosso primo, Cláudio. Ambos tinham latas de cerveja nas mãos e estavam claramente alterados.

              – Vou sim. – respondi – Vi no folder que começa logo antes do anoitecer, às 18 horas.

              – Nós também vamos. – disse o Samuel – Quero só ver a merda que aquelas bichinhas fizeram.

              – Como é mesmo o nome do filme? – perguntou Cláudio.

              – Dillo... alguma coisa. – respondeu o meu irmão, dando risada.

              – “Dillodokers”. – expliquei – Está escrito no panfleto que deixaram ali na frente.

              – Que porra de nome é esse?! – resmungou Samuel, balançando a cabeça.

              – Deve ser o nome de uma banda de “rock pauleira” que os cabeludos inventaram! – disse o Cláudio, rindo – Vai ver que o filme é tipo um clipe deles tocando uma música que nem do Sepultura ou dessas merdas como das camisetas que eles usam!

              – Imagina o fiasco! – retrucou Samuel, emendando uma gargalhada.

              E assim, rindo daquele jeito que todo bêbado costuma rir, os dois saíram pela porta da cozinha. Lá de fora ainda escutei o Cláudio falando “Sabe aquele tal de Vítor? O diretor do filme? Ouvi dizer que lá na escola os caras do futebol enfiaram a cara dele dentro da privada e puxaram a descarga!”, e o Samuel emendou “Já ouvi falar que fizeram coisas bem piores com aquela bichinha!”.

              Eu disse para a Raiana ir me encontrar diante do palco principal quando chegasse na Feira, pois eu estaria lá assistindo o aguardado filme. Dei um beijo na mãe e também na vó e depois fui caminhando em direção ao Parque de Eventos. Ficava distante apenas três quarteirões da nossa casa. Percebi que o céu estava ficando mais escuro, como se fosse chover.

              As ruas estavam lotadas de gente para tudo quanto era lado. A cidadezinha não tinha nem 5 mil habitantes, mas durante as edições da Feira da Mandioca se dizia que até 25 mil pessoas circulavam por ali. Parece que o povo adora tudo que tem a ver com mandioca. É mandioca cozida, mandioca assada, bolo de mandioca, churrasco de mandioca, sorvete de mandioca, suco de mandioca, leite de mandioca, cerveja de mandioca e assim por diante.

              Quando cheguei no Parque de Eventos, tive a impressão de que, além do pessoal de fora, 90% da cidade já estava ali. Adultos andando com crianças chorando e esperneando para lá e para cá, jovens bebendo e dando risada, velhos observando tudo com olhos arregalados e fofocando. Tudo normal. Só eu que não me sentia totalmente normal. A dor de cabeça tinha praticamente passado, mas aquela sensação de leve vertigem continuava. Além disso, tinha alguma outra coisa que eu não estava identificando ao certo. Seria a porra do remédio?

              O palco principal ficava debaixo de uma espécie de lona de circo amarela e gigante. De um lado havia um telão igualmente gigantesco e do outro um bar improvisado onde vendiam cervejas e refrigerantes. Tinha vários outros telões menores espalhados pelo parque e, pelo que pude perceber enquanto circulava por ali, todo mundo estava ansioso para assistir o “filmeco dos cabeludos maconheiros”, como ouvi uma guria esnobe dizendo.

              Naquele momento estavam ocorrendo as apresentações musicais. Uma menina magricela estava no centro do palco cantando uma música da Cássia Eller com uma voz de taquara rachada extremamente desafinada. “Quem sabe eu ainda sou uma garotinhaaaaa!” O pessoal na plateia morrendo de rir. Nas cidadezinhas do interior o negócio não é fácil. Todo mundo conhece todo mundo, então, ou você mata um leão por dia e se supera, ou sempre vai ter alguém para apontar o dedo e falar dos seus defeitos. É foda.

              Eu mal havia chegado ao bar para pedir um refri, quando uma voz empolgadíssima começou a gritar às minhas costas. “Sandro! Sandrinho, meu velho!” Era o Carlinhos, meu grande amigo de infância, que eu já não via há uns dois anos.

              – Caramba, velho! Não sabia que você vinha! – falei, dando um abraço no meu camarada.

              – Decidi em cima da hora. – disse o Carlinhos – Cheguei agora mesmo. Encontrei o seu irmão lá perto do portão e ele falou que você estaria aqui. Senão teria ido até a sua casa.

              – E como estão as coisas lá em Porto Alegre?

              – Tudo beleza. As vendas estão super boas. E você, cara, como está?

              Daí eu falei que estava tudo certo. Contei que estava no segundo ano da faculdade de Direito e trabalhando no escritório de advocacia da nossa família. Na verdade, eu já trabalhava lá como office boy desde os 14, então, era o caminho natural. Falei que a Raiana estava na faculdade de Educação Física e dando aula de aeróbica e zumba na academia, porque ela era boa pra caralho. Estávamos muito bem, a Raiana e eu.

              Daí o Carlinhos já pegou duas cervejas no bar e me alcançou uma. Fiquei meio assim, se devia beber ou não, mas, porra, era o meu grande amigo que tava ali! Beber uma ou duas valia à pena. Não ia dar nada.

              Então começamos a conversar sobre tudo quanto era assunto, principalmente relembrar histórias engraçadas do passado. O Carlinhos era mestre em imitar os outros e, para cada um dos nossos antigos colegas de escola, ele tinha uma bobagem específica para falar e fazer suas imitações. Logo a minha barriga já estava doendo de tanto dar risada.

              Quando o Carlinhos foi dar uma mijada, voltei a prestar atenção no palco. Um moleque loiro cantava uma música da Legião Urbana. Até que não foi tão mal. Quando terminou, quase ninguém aplaudiu, mas pelo menos não foi vaiado. Pelo horário, deduzi que na sequência viria a exibição do filme. Então o Carlinhos voltou com mais cervejas.

              – Você lembra daquela vez que fomos no baile com o Chevette lotado e na volta acabou a gasolina? – perguntou ele, com a voz já meio enrolada.

              É claro que eu lembrava. Essa era a melhor história de todas. A performance do Carlinhos para relatar os fatos e imitar as falas e trejeitos dos envolvidos era sensacional. Impossível não chorar de tanto rir.

              E foi nesse clima, entre cervejas e gargalhadas, que o meu interesse no tal curta-metragem dos garotos da escola subitamente diminuiu. Até porque, pelo que percebi, ninguém fez qualquer tipo de introdução. Simplesmente as luzes do palco foram desligadas e a exibição começou. Olhei de relance e vi as letras vermelhas, tipo aquelas de abertura de filmes de terror, surgindo sobre um fundo preto. “Dillodokers”. “Roteiro e direção: Vítor Venganno”. O povo todo ali ao redor parecia muito compenetrado.

              – Lembra daquela vez que o Gordo cagou nas calças?! – perguntou Carlinhos, emendando uma gargalhada em seguida.

              – Caralho! E como esquecer?! – respondi empolgado, deixando cair a latinha de cerveja.

              E então o filme foi completamente ignorado por mim e pelo meu amigo. Continuamos bebendo e rindo, não sei por quanto tempo exatamente, até eu perceber que havia alguma coisa errada.

              O primeiro fato bizarro que notei foi um sujeito grandalhão e careca que estava bebendo no canto esquerdo do bar. Ele pegou uma lata de cerveja, abriu de forma apressada e virou tudo de uma vez só. Amassou a lata, pediu outra e fez a mesma coisa. Depois de novo, e de novo. Deve ter esvaziado umas seis ou sete latas em um minuto. Enquanto bebia, parecia que ficava cada vez mais agitado e ansioso. Xingava os caras do bar porque demoravam para lhe entregar as cervejas, e tomava tudo de forma tão desesperada que ia derramando boa parte pelo rosto e pelo peito. De repente, outras pessoas começaram a fazer exatamente a mesma coisa. Era como se tivessem sido acometidos por uma sede maluca, ou algo assim.

              O grandalhão careca, cada vez mais irritado com a velocidade que lhe entregavam as latas – que, no entender dele, estava muito devagar – pulou o balcão do bar e começou ele próprio a pegar as cervejas no freezer. Os funcionários tentaram impedi-lo e um princípio de tumulto teria se formado, se outra coisa ainda mais caótica não tivesse acontecido. Do nada, muita gente começou a fazer a mesma coisa. Sem mais nem menos, dezenas de pessoas começaram a invadir o bar, abrir as bebidas e tomar tudo ali mesmo, como se não houvesse amanhã. E eram homens, mulheres, crianças, velhos, de tudo.

              Virei para o Carlinhos, querendo saber o que ele achava dessa loucura toda e então senti um calafrio quando percebi um olhar alucinado no rosto dele. Sem dizer nada, ele simplesmente correu na direção do bar, abrindo caminho aos empurrões entre o pessoal que se acotovelava ali, pulou o balcão e começou a disputar latas de cerveja com os outros ensandecidos. Quando conseguia pegar alguma, enfiava na boca com desespero, antes que alguém tentasse tirar da mão dele e beber por primeiro.

              Olhei ao redor, com uma sensação de angústia cada vez maior, e vi que algo assim estava acontecendo em várias partes do parque ao mesmo tempo. Em uma estradinha lateral tinha outro bar, menor, que ficava dentro de uma casinha de madeira. A invasão lá estava tão insana que as tábuas das paredes começaram a ceder, até que, de tanta gente batendo, empurrando e balançando, o negócio inteiro desabou e uma multidão se espremeu sobre os freezers disputando as bebidas. Do lado de fora do lonão principal havia várias barraquinhas de comida enfileiradas e elas também estavam sendo atacadas. Parecia que o surto de loucura coletiva queria comida também e não só bebida. As pessoas pegavam bolos, pães, doces e tudo que era tipo de coisa e devoravam de forma voraz, como animais selvagens. Tentavam tirar as coisas das mãos umas das outras e, quando algo caía no chão, comiam o mais rápido que podiam, antes que alguém pegasse. Nessa ânsia, engoliam junto pedaços de grama, terra e o que mais tivesse pelo chão.

              O mais impressionante era que, em meio a esse caos, algumas pessoas permaneciam indiferentes, assistindo ao filme tranquilamente, como se nada estivesse acontecendo. O filme! Foi só naquele momento que percebi que ele parecia não ter diálogo nenhum. Apenas um ruído esquisito e contínuo saía das caixas de som, tipo o barulho de uma máquina estranha ou talvez um objeto de metal sendo arrastado sem parar em um piso de concreto. Algo assim. Não dava para saber se o som era do próprio vídeo ou alguma interferência no sistema.

              De forma meio automática, olhei para o telão mais próximo. A imagem – muito ruim, como se gravada com uma câmera VHS vagabunda – mostrava apenas o interior escuro de um local que parecia um galpão abandonado, cheio de tralhas e sujeira espalhadas pelo chão. E aquele som! Aquilo parecia cada vez mais alto e angustiante.

              Eu não fazia a menor ideia do que estava acontecendo, mas a sensação era terrível. Era como uma certeza interior de que algo muito pior do que aquela bizarrice ainda estava por vir. Aquilo parecia ser apenas o começo.

              Então a Raiana me veio à mente. Onde ela estaria? Já deveria ter chegado, certamente. Naquele momento, me pareceu que nada poderia ser mais importante do que encontrá-la. Se algo de terrível estava ocorrendo ali, eu precisava protegê-la.

              Comecei a andar em direção à entrada do parque e o show de horrores foi ficando cada vez pior. Tinha gente de quatro no chão, comendo grama como se fossem vacas pastando. Gente revirando as latas de lixo e comendo tudo que achavam dentro. Então eu vi! Meu Deus! Eu vi uns caras devorando um dos gansos que ficavam no lago que havia no interior do parque! Apertei o passo, quase correndo para me afastar dali o quanto antes, e no caminho segui encontrando pessoas que assistiam ao filme nos vários telões espalhados, como se não se dessem conta do que acontecia ao redor. Ainda não tinha anoitecido, mas o céu estava cada vez mais escuro. Estranhamente escuro.

              – Esse filme é realmente impressionante! – dizia uma adolescente olhando para a tela, com expressão maravilhada.

              – Tem certeza que foi feito por um pessoal daqui? – questionava um homem ao lado, que devia ser o pai dela, igualmente impressionado.

              Novamente tive o impulso de olhar para a tela. Continuei vendo apenas a imagem da câmera se movendo pelo ambiente escuro e sujo, com aquela merda de som ao fundo, cada vez mais alto.

              A minha atenção foi dispersa quando alguém trombou em mim. Eram dois garotos, de 11 ou 12 anos. Eles tinham as mãos cheias de... cheias de merda! O fedor não deixava dúvidas!

              – Lá no banheiro os vasos transbordaram e tem um monte de merda boiando! – disse um deles com empolgação – É só ir lá e pegar!

              Em seguida os dois seguiram adiante, comendo aquela bosta pastosa e nojenta com grandes bocadas, como se fosse a coisa mais gostosa do mundo.

              Me escorei num poste e vomitei. Será que aquela porra toda era real? A vertigem que eu sentia desde que tinha acordado parecia cada vez mais forte e aquele som – do filme ou do que quer que fosse – contribuía para deixar tudo mais angustiante. Sentia uma necessidade de formular uma explicação racional para aquele caos, mas não tive como, porque a loucura coletiva atingiu um novo nível a partir dali.

              Além de pessoas comendo e bebendo tudo que encontravam pela frente em meio a outras que permaneciam impassíveis, de olho na tela, agora tinha gente tirando a roupa e que, depois de nus, começavam rapidamente – sem qualquer conversa prévia – a transar umas com as outras! De repente o parque virou um festival de surubas e orgias. Tinha gente nova trepando com gente velha, homem com homem, mulher com mulher, parente com parente... tem coisas que não deveriam ser vistas, que não deveriam ser lembradas.

              O meu desespero para encontrar a Raiana foi ficando cada vez maior. Eu sequer cogitava tentar conversar com as pessoas que estavam concentradas no filme e pedir se elas não estavam se dando conta do que acontecia. Gostaria que alguém tivesse alguma explicação, mas, naquele momento, urgente mesmo era só encontrar a minha esposa.

              Então eu vi o João, nosso vizinho. Ele vinha andando com olhar perdido, como se estivesse em algum tipo de transe ou estado de choque.

              – João! João! Você viu a Raiana?

              – Vi sim. – disse ele, com uma voz estranha – Está ali do lado daquele barracão, fodendo com um cara.

              Senti o meu corpo inteiro gelar quando ouvi aquilo. Pensei em pedir mais detalhes, mas não deu tempo porque, sem mais nem menos, o João começou a tirar a roupa e correu em direção a um grupo de pessoas que fazia uma orgia debaixo das árvores ali do lado.

              Corri ao local que ele havia indicado. Atrás do galpão, bem no canto, tinha um cara com roupa de ciclista, com a bermuda abaixada até os tornozelos, mandando ver em uma mulher nua que estava no chão, de quatro. Com o coração quase saindo pela boca, cheguei até lá e vi – para o meu grande alívio – que não era a Raiana. Na verdade, eu conhecia aquele cara. Era dono de uma loja de artigos de informática e aquela mulher era sua... bem, é melhor deixar para lá.

              Quando voltei para o caminho que levava à entrada do parque, vi uns caras dando ré em uma caminhonete e batendo com a carroceria de encontro ao muro de contenção de um dos vários lagos artificiais que haviam no local. Com isso, a água começou a escorrer para fora e, como era numa descida, logo se formou uma espécie de tobogã aquático na grama. Várias pessoas – nuas – começaram então a deslizar para baixo rindo e se divertindo, até chegar na borda do caminho, que já começava a virar um lamaçal. Lá alguns punham-se a transar, outros ficavam apenas chafurdando no barro, como se fosse a coisa mais divertida do mundo.

              Eu estava cada vez mais chocado. Se não bastasse aquele show de horrores, ainda sentia aquela vertigem estranha. E o som que não parava?! Aquele maldito som! Tinha sérias dúvidas sobre por quanto tempo ainda conseguiria manter a sanidade.

              Foi quando avistei o meu irmão! O Samuel estava parado com o telefone celular no ouvido, como se estivesse fazendo um esforço para escutar o que diziam do outro lado. Eu ainda nem tinha celular e ele já estava no segundo modelo. Era um cara que adorava tecnologia.

              – Samuel! Que porra tá acontecendo, cara?! – perguntei, praticamente gritando – Cadê a Raiana, o pai e o resto do pessoal?

              – Estão lá perto do portão. – disse ele, me olhando daquele jeito estranho, com olhos vidrados, como os outros, segundos antes de fazer algo insano – Olha, é a mãe no celular.

              Ele me alcançou o aparelho e coloquei no ouvido. Só se ouviam gemidos, claramente de teor sexual e risos abafados no fundo. Senti meu estômago embrulhando.

              – Mãe?! É você, mãe?! – perguntei, apavorado.

              Em resposta, apenas mais gemidos e mais risos, parecendo ainda mais excitados.

              Olhei para o Samuel, mas ele não estava mais ali. Vi ele já longe, correndo meio desajeitado enquanto tirava as cuecas. Joguei o celular no chão e vomitei de novo.

              Quando me recompus um pouco, percebi várias pessoas deitadas nos bancos ou diretamente na grama, como se estivessem relaxando na beira da praia ou no sofá de casa. Não pareciam nada preocupadas com o caos ao redor. Bem ao lado da estrada tinha um poça de lama com dois caras deitados de bruços. Cheguei a pensar que estivessem mortos, mas quando me aproximei vi que estavam rindo, chafurdando ali e cochichando sobre algo que parecia muito divertido.

              Abrindo espaço por entre aquela multidão insana e assustadora, passei ao lado de dois caras que tinham sido meus colegas de aula. O Danilo e o Anselmo, que – por motivos óbvios – na escola tinha ganhado o apelido de Sabidão. Eles estavam entre aqueles que permaneciam assistindo o filme como se nada de anormal estivesse acontecendo ao redor.

              – Olha os monstros que esses caras fizeram! – dizia o Danilo apontando para o telão – parece aqueles bonecos dos filmes dos anos 80!

              – Se chamam “efeitos animatrônicos”. – corrigiu o Sabidão.

              – Esse aí está mais para aqueles personagens feitos com massinha de modelar que depois são filmados em posições diferentes para fazer o movimento! – insistiu Danilo, em tom de deboche.

              – Isso se chama “stop motion”. – retrucou o Sabidão, com cara de tédio.

              Nesse momento tive novamente um impulso de olhar para a tela e o que vi foi uma sequência perturbadora de monstrengos asquerosos e bizarros que, ao que tudo indicava, estavam no interior daquele galpão mostrado desde o início do vídeo. Um deles era praticamente uma bola de gosma verde escura, meio escamosa, com enormes olhos de peixe e com uma boca saliente cheia de dentes pontudos que pareciam afiados. Daquele corpo nojento saiam dois braços esqueléticos com dedos em forma de garras finas. Ele ficava meio que quicando, como uma bola de basquete próxima do chão. Outro era simplesmente uma mancha de gosma enegrecida de onde saía um monte de tentáculos como os de um polvo e se movia escorrendo pelas paredes e pelo teto. O mais bizarro de todos era um que mal consigo descrever, mas parecia algo como um amontoado de órgãos genitais gigantes e misturados entre si, com um par de olhos animalescos na parte de cima. Bem na hora que olhei, essa criatura fez abrir de si mesma um orifício que parecia um cu de um metro e meio de diâmetro e lá de dentro saiu um tentáculo que ficou se agitando pra fora, como uma cobra enlouquecida. Ainda vi outro, que era basicamente uma lesma gigante e todos pareciam muito reais para mim. Pavorosamente reais.

              Eu não sei quanto tempo teria permanecido assistindo aquilo – talvez até ser completamente dominado pela loucura – se não tivesse percebido, com o canto do olho, algo que me chamou a atenção um pouco à frente do telão. Um rapaz magro, com cabelo preto e comprido até a altura dos ombros, vestindo aquelas calças largas tipo de skatista e um moletom de capuz, também preto. O reconheci imediatamente. Era Vítor Venganno, o diretor da bosta de filme infernal que estava sendo exibido no meio daquele pesadelo. Ele estava parado no centro do pandemônio, observando a tudo silenciosamente, com uma cara estranha. O puto estava sorrindo?! Pra mim fazia sentido.

              Comecei a abrir caminho por entre aquele imenso bando de gente louca que seguia comendo, bebendo e fodendo por todos os lados, como se não houvesse amanhã. As vozes que ressoavam em meio à multidão formavam como se fosse um coro de gemidos e risadas macabras que só não era alto o suficiente para abafar aquele ruído infernal emitido pelo vídeo.

              Quando Vítor percebeu que eu estava indo diretamente até ele, ficou um instante me olhando com cara de assustado e depois tentou fugir no meio do povo ensandecido. Eu apertei o passo, empurrei algumas pessoas que estavam pela frente e consegui alcançá-lo poucos metros adiante. Agarrei-o pela blusa e o segurei sem dificuldades. Era um sujeito pequeno e fracote, e poderia mandá-lo para o hospital com um único soco bem dado no meio da cara. Eu realmente estava disposto a isso, se fosse necessário. Sentia que podia fazer algo para parar com todo aquele caos. Iria obrigar o babaca a interromper a merda que estava fazendo e assim poderia salvar da maré de insanidade não só a Raiana – onde quer que ela estivesse – mas também o resto da minha família e todo mundo.

              – Parado aí, seu filho da puta! – gritei, com o sangue fervendo de raiva – Essa porra toda é culpa sua, não é?!

              – Me larga, seu brutamontes! – disse ele, tentando se desvencilhar.

              Então dei-lhe um soco com força, bem no estômago. Ele gemeu e se ajoelhou, com lágrimas escorrendo dos olhos. Era um babaca fraco e covarde, que não aguentava porrada e certamente iria colaborar só pelo medo de apanhar.

              – É essa sua bosta de filme, né?! – gritei, chacoalhando ele pela blusa – É isso que está deixando todo mundo louco! Agora você vai comigo até a mesa de controle e vamos desligar essa porra, senão vou quebrar todos os dentes da sua boca!

              – O filme já está acabando... – disse ele, com as duas mãos sobre o abdômen, fazendo força para respirar – Esse vídeo é só um catalisador para iniciar o processo. Agora tudo vai continuar automaticamente.

              E, de fato, segundos depois a imagem sumiu e os telões ficaram vazios. Mas, havia um detalhe: aquele som infernal não parou. Parecia diferente, como se estivesse em outra frequência ou tom, mas estava até mais nítido e alto do que durante a exibição do filme. Ao redor, a situação de insanidade generalizada só parecia aumentar.

              – Por que essa desgraça de barulho não para?! – gritei, chacoalhando o sujeito pelos ombros com tanta força que ele praticamente nem conseguia se equilibrar para ficar de pé.

              – Esse som não é mais do vídeo... – resmungou Vítor, com dificuldade – Já é daqui.

              Ele apontou para cima e eu então olhei para o céu... um céu escuro e assustador. Não era a escuridão da noite chegando, nem de um temporal se aproximando, apesar das nuvens carregadas. Me pareceu como se fosse uma escuridão viva, profunda, de onde ressoava aquele barulho grotesco.

              – Como é que se para isso?! – berrei, cada vez mais apavorado.

              – Não sei se tem como parar. – disse ele.

              – Não sabe?! Você tá fodido, seu filho da puta! – gritei, antes de lhe dar outro soco no estômago. Dessa vez ele só não desabou com tudo no chão porque eu o mantive suspenso pelo capuz do moletom.

              – Tá bom! Tá bom! – interrompeu ele, praticamente chorando, quando eu ergui a mão para lhe dar mais uma porrada – Podemos tentar romper o círculo do ritual.

              – Romper o quê?! Onde?! – questionei, ainda com o punho erguido.

              – Lá em cima, nos barracões abandonados... na parte antiga do parque. – respondeu ele, com as mãos erguidas para tentar se proteger.

              Eu sabia de que lugar ele estava falando. Originalmente, o Parque de Eventos havia sido construído em uma área distante uns 300 ou 400 metros do atual. Ficava no topo de uma elevação, com bastante árvores ao redor. Quando uma ampliação se fez necessária, com o público cada vez maior que comparecia à Festa da Mandioca, decidiram transferir o evento para o local onde está hoje, por ser mais plano e comportar melhor a infraestrutura. Os barracões da parte antiga acabaram ficando abandonados ou, no máximo, eram utilizados para guardar objetos da decoração da Festa, ferramentas e tralhas diversas. Na escola todo mundo sabia que aquele local de vez em quando era utilizado pelos alunos do Ensino Médio para beber e fumar escondido e, eventualmente, transar. Então entendi que havia sido lá, num dos barracões abandonados, que o vídeo exibido nos telões havia sido gravado. Tinha reconhecido o local.

              – Vamos logo, seu bosta! – falei, puxando Vítor pelo capuz – E se você tentar me enganar, eu quebro o seu pescoço!

              Enquanto seguíamos para a parte antiga do parque, vi que o festival de insanidade continuava firme e forte. Tinha multidões comendo, bebendo e fodendo – de forma alucinada, por todos os lados – e, no meio dessas, tinha pessoas deitadas na grama, conversando tranquilamente, indiferentes. Algumas estavam relaxando descontraídas e outras, com certeza, estavam dormindo, no maior sossego. Vi também gente pelada se esfregando em árvores, como se estivessem tentando transar com elas, e, ao longe, avistei alguns poucos indivíduos correndo para fora dos portões do parque. Parecia que nem todo mundo era afetado do mesmo jeito pela onda de loucura.

              – Por que alguns ficam loucos e outros não? – perguntei.

              – Não sei. – resmungou Vítor.

              Abri a mão e lhe dei uma bofetada com toda força, bem no meio da cara. Ele caiu no chão soltando um grito abafado. Minha paciência tinha acabado.

              – Vou perguntar de novo... – falei, erguendo ele pelo pescoço e preparando a mão para outro golpe.

              – Eu estou imune por causa disso... – interrompeu Vítor, com voz embargada, puxando a gola do moletom para baixo e expondo um colar com algum tipo de cristais negros envolta do pescoço – Mas não tenho certeza do porquê de outras pessoas serem afetadas de formas diferentes. Acho que, como os Dillodokers agem sobre a mente dos indivíduos, instigando emoções e despertando instintos, isso varia de acordo com o perfil psicológico de cada um. Quanto mais sensível ou mais afinidade tiver com certos tipos de sentimentos, mais vulnerável fica.

              – Dillodokers... que porra é essa?! São aquelas coisas que apareceram no vídeo? Aquilo existe de verdade?

              – Sim. – respondeu ele, voltando a caminhar enquanto eu o puxava pelo capuz – São seres que existem em outra dimensão, no Plano Astral. Pelo que consegui analisar, eles são personificações de emoções primitivas, nossos instintos primais, vícios, compulsões... algo análogo ao que os cabalistas chamam de Demônios das Qlipoth e que a Igreja simplificou ao tratar dos Sete Pecados Capitais.

              – E o que essas coisas estão fazendo aqui?! – perguntei, quase rindo de nervoso.

              – Esses seres sempre estiveram por aí. – disse Vítor, parecendo mais disposto a conversar depois das pancadas que levou – Praticamente todas as culturas do passado se referiam a eles, cada uma lhes dando nomes diferentes. Na verdade, eles são mais antigos do que a humanidade do jeito que conhecemos.

              – O que eu estou querendo saber é por que eles estão fazendo esse pandemônio todo hoje, exatamente aqui, neste local...

              – Porque eu fiz um ritual que abriu um canal de conexão direto entre a dimensão deles e a nossa. – respondeu Vítor, com cara de quem estava com medo de receber mais porradas – Todo mundo sofre influência dessas criaturas no dia a dia, em maior ou menor grau. Eles são a manifestação dos nossos próprios impulsos negativos. Mas com o portal dimensional que eu abri e com o filme servindo para colocar todo mundo na frequência mental adequada, eles estão conseguindo agir com muito mais intensidade. Eles estimulam certas emoções na mente das pessoas até que fiquem descontroladas e então passam a se alimentar dessa energia psíquica alterada. Quanto mais absorvem dos indivíduos, mais fortes ficam e, por causa disso, mais estimulam a mente das vítimas, num processo que se retroalimenta.

              – Que loucura! – eu falei, indignado – Só acredito por que estou vendo com os meus próprios olhos, e ainda assim não tenho plena certeza se não estou sonhando, delirando, ou completamente louco.

              Vítor não disse nada dessa vez, apenas ficou me olhando com uma cara estranha. Eu estava surpreso em ver como ele era inteligente e articulado, apesar da ideia estúpida que teve. Me perguntei se ele sofria bullying por ser um babaca ou se havia se tornado um babaca por tanto sofrer bullying.

              Já estávamos chegando no sopé do morro que dava acesso à parte antiga do parque, quando vi, em meio ao caos, algo que me chamou a atenção. Era o Sabidão. Estava parado, olhando para cima com uma expressão esquisita. Quando passamos por ele, pareceu notar a nossa presença.

              – Você sabe o que ele fez, não é, Sandrinho? – disse o sabidão, com um tom de voz que parecia expressar mais surpresa, ou talvez até admiração, do que propriamente medo ou raiva.

              Não respondi nada. Continuamos andando apressadamente. Não havia tempo para conversa. Precisávamos fazer algo com urgência. Aquele som terrível que vinha do céu escuro parecia cada vez pior. Agora era como se centenas de tábuas de madeira estivessem sendo quebradas ao mesmo tempo. E aquela sensação que eu sentia desde que acordei, uma vertigem que não era bem vertigem, também parecia estar piorando, minuto a minuto.

              – Está ouvindo esse barulho? – perguntou o Sabidão, já ficando para trás – É a malha do espaço-tempo sendo rompida.

              Um calafrio passou por mim naquele momento. Olhei por sobre o ombro e o Sabidão continuava lá, imóvel, encarando as nuvens escuras e anormais do céu apocalíptico.

              Eu puxava Vítor pelo capuz e pelo braço para que ele andasse mais depressa. Estávamos praticamente correndo morro acima, através de uma estradinha de terra rodeada por árvores grandes e antigas.

              – Como é o fim disso? – perguntei, sem diminuir o passo – Como um pandemônio como esse termina?

              – Normalmente, pessoas sob um grau tão intenso de influência dos Dillodokers acabam enlouquecendo de forma irreversível, morrem por sofrer algum tipo de colapso físico, se suicidam ou acabam matando umas as outras. – disse Vítor, ofegante – Mas hoje, em função do portal dimensional aberto pelo ritual e da imensa energia fornecida por toda essa gente, eles vão se materializar, vão poder agir fisicamente no nosso mundo.

              – E o que eles vão fazer?! – questionei, me arrependendo logo em seguida por ter feito essa pergunta.

              – Vão fazer a única coisa que é da natureza de cada um deles... – respondeu Vítor, cada vez com menos fôlego em função da caminhada – Os da gula vão devorar tudo que estiver pela frente, os da luxúria vão estuprar qualquer um que tenha órgãos genitais, e assim por diante...

              – E essa é a sua vingança, não é mesmo?! – gritei, fazendo um esforço para me controlar e não arrebentar todos os ossos da cara daquele filho da puta ali mesmo – Você nunca foi homem que chega para enfrentar quem lhe abusava! Nunca teve coragem de reagir! E agora se vinga destruindo todo mundo! Um monte de gente inocente que nunca lhe fez nada!

              Vítor não respondeu. Apenas olhou para o chão e se encolheu, decerto com medo de apanhar. Embora estivesse mesmo com vontade de fazer isso, precisei me escorar em uma árvore na beira da estrada e vomitar. Cheguei a pensar que ele tentaria fugir enquanto eu vomitava, mas nem tentou. Devia estar cansado demais, ou com receio do que aconteceria quando eu o pegasse de novo.

              Logo adiante já começavam a aparecer os barracões abandonados. Eram quatro, a maioria deles em péssimas condições, com tábuas podres nas paredes e vigas do telhado envergadas para baixo. Dava a impressão que poderiam desabar a qualquer momento.

              – É aqui. – disse Vítor, apontando para o primeiro deles.

              As duas janelas da frente estavam fechadas, mas a porta estava apenas escorada por uma tramela de madeira. Ele abriu e entrou na frente. Eu fiquei um pouco para trás. Fui tomado por uma sensação de medo que dava a impressão que faria meu coração sair pela boca.

              – Eles estão aqui dentro? – perguntei, espiando pela porta entreaberta.

              – Não. – respondeu Vítor – Eles ainda estão na dimensão deles. Não fizeram a travessia por enquanto. Mas deve faltar pouco.

              – Mas, no seu vídeo... você os filmou. – insisti, entrando com desconfiança.

              – Naquele dia eu fiz um ritual para que eles se materializassem, justamente para poder filmá-los, mas foi por poucos segundos. Precisa muita energia para que eles possam se manifestar diretamente no plano físico. Mesmo tendo sido bem rápido, foi preciso um grande sacrifício para que eles aparecessem daquela vez.

              – Um sacrifício... – falei, sentindo minhas pernas tremerem – e o que... quem você sacrificou?

              – Você vai preferir não saber. – respondeu ele em um tom de voz baixo, quase um resmungo.

              Dessa vez ele tinha razão. Eu preferia não saber.

              Dei alguns passos para dentro do galpão. As duas janelas do fundo estavam abertas, fazendo com que até desse para enxergar algo em meio a penumbra. Junto à parede da direita havia uma velha cadeira de escritório e uma espécie de escrivaninha improvisada com tábuas e tijolos. Me aproximei e vi sobre ela vários livros, a maioria em inglês, de autores como Helena Blavatsky, Franz Hartmann, Charles Leadbeater, Eliphas Levi, Kenneth Grant e Phil Hine. Também tinha um manuscrito com várias páginas amareladas, tipo um pergaminho, escrito em um idioma completamente desconhecido.

              – Você não vai entender nada. – disse Vítor, às minhas costas – Está escrito em Aklo.

              – Foi com isso que você começou a fazer essas merdas de rituais? – perguntei.

              – Sim... – ele respondeu acenando positivamente com a cabeça e em seguida apontando para o chão, um pouco mais ao fundo do barracão – E também com aquilo.

              Cheguei mais perto para poder ver melhor. No piso havia sido traçado um círculo de mais ou menos uns três metros de diâmetro. Em seu interior foram desenhadas algumas figuras geométricas esquisitas e vários caracteres daquela escrita estranha, do pergaminho. Na borda do círculo, espaçados regularmente, estavam vários cristais de quartzo transparente – tipo aqueles que se vende em Soledade – de uns quinze ou vinte centímetros de altura cada, e bem no centro havia um objeto que, de cara, me pareceu muito insólito. Era uma pequena pirâmide negra, de apenas uns dez ou quinze centímetros de altura, mas parecia ser feita de um material desconhecido. Não dava para ter certeza se era algum tipo de cristal, metal, ou sabe-se lá o quê. Na verdade, era até difícil ficar olhando para aquilo, pois quando nos aproximamos do círculo o objeto simplesmente começou a emitir flashes de luz, como se tivesse detectado a nossa presença, ou algo assim. A pirâmide parecia estar vibrando, numa velocidade cada vez maior.

              – De onde veio essa porra?! – perguntei, impressionado.

              – Quem trouxe a pirâmide junto com o pergaminho foi o meu irmão. – respondeu Vítor – Não sei a origem do artefato, mas deve ser algo de uma civilização ancestral, incrivelmente antiga.

              O irmão dele? É claro que eu conhecia. Walter Venganno. Devia ser uns quatro anos mais velho e todo mundo o considerava até mais babaca do que o Vítor. Então, como não podia deixar de ser, sofria o dobro de bullying do que o outro. A principal diferença era que, enquanto o Vítor tinha banca de rockeiro revoltado, Walter era o nerd clássico, com direito a usar roupas bregas, óculos cafonas e todo o resto. Era o tipo de sujeito que só tirava nota 10 na escola, em todas as matérias, e sempre ficava em primeiro lugar nas Feiras de Ciências. O Sabidão era o único que conseguia rivalizar com ele, mas acabava sempre perdendo. Walter Venganno era imbatível em termos de ser CDF. Quando terminou o Ensino Médio, foi para Porto Alegre fazer faculdade, se não me engano, de Física, ou algum outro desses cursos que só consegue concluir quem passa o dia inteiro estudando, sem nunca beber e nem comer mulher nenhuma. Só estudo, nada de diversão. Assim era o Walter Venganno que eu lembrava.

              – O seu irmão também está envolvido nessa merda?! – questionei – Cadê ele?

              Vítor não respondeu. Apenas abaixou a cabeça rapidamente, como se estivesse escondendo algo e então – talvez sem se dar conta – ficou olhando fixamente para o interior do círculo ritualístico.

              De forma meio automática, eu comecei a olhar também e só então percebi, em meio a todos aqueles símbolos e caracteres bizarros, que havia ali algum tipo de líquido ressecado, viscoso e escuro. Seria sangue?

              Foi nesse momento que a barulheira vinda de fora chamou a minha atenção. Primeiro foram os gritos vindos lá de baixo, da parte principal do parque. Gritos que pareciam de dor, de pavor... gritos horríveis. Milhares de pessoas gritando ao mesmo tempo.

              Quando dei por mim, já estava em uma das janelas traseiras do barracão. Olhei para baixo e vi um barranco, quase totalmente íngreme, de pelos menos uns vinte metros de altura e, lá no fundo, a mata fechada. Mas, olhando para a direita, dava para avistar ao longe uma parte do lonão principal do parque e das barraquinhas de comida. Lá se via uma multidão correndo desordenadamente para todos os lados. Pareciam vários focos de brigas generalizadas. Tive a impressão de ter ouvido tiros e, de repente, algumas barracas começaram a pegar fogo. Olhei para Vítor, em pânico.

              – Pelo que eu tinha percebido, já tinham se manifestado as energias da Gula, da Luxúria e da Preguiça... – disse Vítor, antes mesmo que eu perguntasse – Agora devem ter começado as outras. 

              Praticamente ao mesmo tempo, aquele som pavoroso vindo do alto pareceu se multiplicar absurdamente. Se antes era como se centenas de tábuas estivessem sendo quebradas ao mesmo tempo, a partir dali pareciam milhares, cada vez mais. Olhei para cima e, através da janela, vi o céu macabro sendo tomado por algo parecido com raios, só que não eram raios de verdade, pois emitiam clarões avermelhados e se espalhavam para os lados ao invés de descer. Pareciam mais rachaduras, caso isso fosse realmente possível.

              – Não deve faltar muito agora. – falou Vítor, com espantosa tranquilidade.

              – Então faça algo! Agora, seu filho da puta! – gritei em desespero, sentindo uma tontura tão forte que era até difícil ficar em pé.

              – Era isso que eu estava tentando te explicar... – insistiu ele – Não conheço nenhum ritual para reverter o processo. Talvez exista, mas eu não sei como é. Nem sequer traduzi todo o manuscrito. Realmente não sei o que fazer.

              Então foda-se. A situação não seria resolvida na base da magia negra, então teria que ser na força bruta. Aquilo me veio à mente e não havia tempo pra mais nada. Não tinha a menor ideia se poderia funcionar e era bem mais provável que não. Mas, azar. Pra quem tava na merda, se sujar um pouco a mais ou a menos, não faria diferença nenhuma. Lembrei da Raiana e da minha família. Só me restava tentar.

              Primeiro, parti na direção daquele puto do Vítor Venganno. Ele me olhou com cara de apavorado quando puxei para o lado a gola do seu moletom e, com a outra mão, arranquei do seu pescoço o colar de proteção. Andei até a janela e joguei o objeto lá pra baixo do penhasco. Sem chance de aquele filho da puta ir até lá pegar de volta. Se o destino de todo mundo seria se foder, então ele iria se foder junto. Que os Dillodokers fizessem bom proveito dele também, se fosse o caso. 

        Em seguida, corri para dentro do círculo ritualístico – meio cambaleando por causa da vertigem, quase insuportável – e chutei com toda a força aquela misteriosa pirâmide que havia no centro. O artefato voou para o outro lado do barracão e deu para ouvir o barulho de quando ele se chocou contra a parede. Então tive a impressão de ficar congelado, preso no ar, imóvel. A sensação seguinte foi como se o meu corpo tivesse desaparecido e ficado só a minha mente, mergulhando cada vez mais rápido em uma escuridão infinita.

 

 

O próximo ciclo inicia em breve...

 

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30 de ago. de 2022

O LADRÃO DE GALINHAS

 

Por André Bozzetto Jr

 

            Enquanto carregava a espingarda com cartuchos retirados de uma pequena caixa de papelão, Sandoval recapitulava a estranha história em sua mente desconfiada. Tinha sido no mês passado que os problemas começaram. O sítio do Claudiomiro foi o primeiro a ter seu galinheiro atacado na calada da noite. Treze galinhas mortas, meio comidas, despedaçadas, com sangue e penas para todo o lado. Ninguém viu nada, mas parecia obra de algum bicho, ainda que não se soubesse qual. Raposa, lobo-guará e leãozinho baio não era. Esses todo mundo já sabia como agiam, e estavam ficando cada vez mais raros. Aquilo lá tinha sido ação de alguma coisa diferente.

            Naquela mesma semana, o galinheiro da fazenda do seu Anacleto também foi atacado de madrugada. Dessa vez mais de vinte galinhas foram feitas em pedaços, algumas devoradas ali mesmo. Os empregados disseram que escutaram o barulho, mas era algo tão horrível que ficaram com medo de ir olhar. Um deles correu pelos fundos da propriedade até a casa grande e acordou o patrão. Mas, até o seu Anacleto – que já está bem idoso – levantar e pegar a espingarda, o bicho tinhoso já tinha ido de volta para o mato, e ninguém conseguiu ver que desgrama era aquela.

            Depois o negócio mudou. Nas três semanas seguintes, outros galinheiros de fazendas dos arredores foram “visitados” altas horas da noite, mas não houve mais matança. As galinhas simplesmente sumiram. Não todas, mas várias. E, por desgraça, ninguém nunca via o desnaturado responsável pela safadeza. Nem sequer os cachorros das propriedades conseguiam intimidar. O povo começou a falar que isso não era coisa de bicho, mas sim de gente, daquele tipo bem sem vergonha. Era um ladrão de galinha, filho de uma égua! Mas, e nas propriedades do Claudiomiro e do seu Anacleto, por que matar as bichinhas ao invés de roubar? Devia ser por sacanagem, vingança de alguém que tinha raiva deles e queria assustar. Talvez algum ex-empregado ou um vizinho invejoso. Então as galinhas não teriam sido meio devoradas como se pensou no início, mas apenas estripadas e mutiladas, provavelmente com uma peixeira. Tinha que ser obra de um patife bem desavergonhado!

            Na realidade, todo mundo dava algum palpite, mas ninguém tinha certeza de nada. Algumas pessoas falavam de um mendigo, um andarilho, ou algo assim, que estava perambulando pelas redondezas há alguns dias. Era comum aparecer gente de fora pedindo emprego nas fazendas, mas aquele só pedia comida e bebida. Já tinha sido posto a correr de várias propriedades por andar espreitando, e se desconfiava que pudesse ser ele quem andava roubando as galinhas da região. Sandoval já tinha visto o sujeito pelas estradas, mais de uma vez. Era velho, sujo, maltrapilho e tinha cara de quem não era nada confiável. Poderia muito bem ser ele o  ladrão safado.

            A inquietação de Sandoval piorou quando, há dois dias atrás, foi dar comida para suas galinhas e percebeu que quatro haviam sumido do galinheiro. Seria a sua vez de ser vítima do larápio? Não iria admitir! Na noite anterior ele tinha bebido alguns copos de vinho a mais, e mesmo que os cachorros tivessem latido, ou se fizesse algum outro barulho, não teria como ouvir por causa do sono profundo. Mas, dali para diante, pretendia se manter muito atento e fazer o que fosse preciso para que o gatuno sem vergonha tivesse o que merecia.

            Naquela tarde, Sandoval foi para a cidade resolver alguns negócios, e, quando voltou, deu de cara com o andarilho dentro de sua propriedade, mais especificamente, na estradinha de terra entre a casa e o galinheiro. “Aí está o larápio desavergonhado!” resmungou ele, saltando da caminhonete sentindo o sangue lhe ferver nas veias. Sem pensar duas vezes, partiu para cima do mendigo e, não lhe dando tempo de dizer qualquer coisa, o atingiu com um soco que o derrubou na estrada poeirenta, para em seguida lhe desferir uma saraivada de violentos pontapés.

            Enquanto o velho maltrapilho gemia, quase se engasgando com o próprio sangue que lhe inundava a boca, Sandoval o arrastou pela gola do casaco imundo e o jogou para fora da porteira do sítio.

            – Suma daqui, seu ladrão vagabundo! – gritou Sandoval, um instante antes de dar meia volta e retornar para o interior de sua propriedade – Se aparecer de novo nas minhas terras, vai levar é chumbo!

            Naquela mesma noite, Sandoval pegou no sono na poltrona da sala. Não havia bebido tanto vinho, então se acordou de supetão quando seu velho cachorro Tufão começou a latir e uma agitação anormal teve início lá pelos lados do galinheiro. Desconfiado, retirou a espingarda do suporte na parede e a lanterna da gaveta da cômoda.

            – Será que mesmo depois de uma surra daquelas o vagabundo teve coragem de voltar aqui para me roubar?! – resmungou sozinho Sandoval, enquanto se dirigia de forma atenta, mas rápida, em direção ao galinheiro.

        Talvez por ter percebido que chamou a atenção, ou simplesmente por já ter pego o que queria, o ladrão não estava mais no galinheiro quando o fazendeiro chegou lá. Porém, o cacarejar das aves roubadas e o som de galhos quebrando fez com que Sandoval apontasse o facho da lanterna na direção da mata, de forma que ele pode ver ao longe – ainda que por um breve momento – o indivíduo que corria entre as árvores levando uma galinha em cada mão.

            Apesar da distância, da escuridão e do rápido momento em que o ladrão foi iluminado pela lanterna, Sandoval não teve dúvidas: era um menino, de doze, ou treze anos, no máximo. Talvez fosse filho daquela gentalha que vivia do outro lado do rio, uns três quilômetros ao sul. De qualquer forma, não adiantava tentar segui-lo e nem ir tomar satisfação no barraco da família. O ideal era pegar no flagrante e, com isso, ter justificativa para lhe aplicar uma boa surra. Era isso que Sandoval pensava. Daria uma surra e tanto no moleque, pelas galinhas roubadas e pelo fato de ele ter batido à toa no mendigo. Não que ele se importasse com um andarilho vagabundo ou estivesse com remorso, mas apenas porque odiava se sentir enganado.

            Era com esses pensamentos em mente – e com a espingarda recém-carregada escorada na poltrona – que Sandoval bebia vinho e aguardava pelo retorno do ladrãozinho salafrário. Sim, porque eles sempre retornam. A tentação de se obter algo sem precisar trabalhar e nem pagar é muito grande. Ainda mais nesse caso, onde Sandoval julgava ser visto como um simples velhote beberrão e solitário, fácil de se passar a perna. Ah, mas aquele moleque safado não perderia por esperar!

            E foi com esse estado de ânimo que o fazendeiro acabou pegando no sono na poltrona, embora não quisesse. Mais tarde, acordou sobressaltado, sem saber por quanto tempo estivera dormindo. O velho relógio de parede marcava que tinham se passado cinco minutos da meia-noite. Lá fora, Tufão latia furiosamente. Sandoval levantou da poltrona e se aproximou da janela a tempo de ver o cachorro correndo na direção do galinheiro. Com toda certeza, o ladrão havia voltado!

            Com a arma em mãos, o fazendeiro abriu a porta e saiu, tentando ser o mais silencioso possível. Dessa vez havia poucas nuvens no céu e a lua cheia se encarregava de iluminar palidamente a paisagem, de forma que a lanterna era dispensável. De repente, um grito terrível ecoou pelo ar, fazendo o sangue de Sandoval lhe gelar nas veias. Foi um berro realmente muito assustador, mas rápido, sendo logo interrompido e substituído por uma espécie de rosnado animalesco e igualmente pavoroso.

            Enquanto ouvia também o barulho das galinhas cacarejando e se debatendo – parecendo apavoradas – Sandoval viu Tufão passar correndo por ele, ganindo desesperadamente. Pela porta entreaberta, ele viu o aterrorizado cachorro entrar na sala e se enfiar debaixo do sofá, como se sua vida dependesse de um bom esconderijo.

           Mesmo sentindo suas mãos tremendo sensivelmente enquanto seguravam a espingarda, Sandoval continuou andando lentamente na direção do galinheiro, mais motivado pela raiva e pela mórbida curiosidade do que propriamente pela coragem. Quando finalmente chegou, viu as galinhas em pânico, se jogando contra as tábuas e os arames, mas também viu algo mais. Era o menino. Mas, ele não estava roubando. Na verdade, não roubaria nada, nunca mais, pois seu corpo estava estirado em meio a uma poça de sangue no gramado, tão terrivelmente mutilado que o fazendeiro teve certeza de que aquilo que o atacou jamais seria um ser humano. Aquilo era coisa do Tinhoso em pessoa!

            Finalmente se deixando dominar pelo mais completo pavor, Sandoval se virou para correr de volta na direção da casa, mas não teve tempo. Algo surgiu das sombras e o agarrou pela parte de trás do pescoço, suspendendo-o no ar e em seguida o arremessando a dois ou três metros de distância. O fazendeiro aterrissou de costas no chão, sentindo, além da dor, o fôlego lhe abandonando. A espingarda havia voado para longe, de modo que a sua única chance seria tentar levantar e correr, mas não seria possível. Aquela coisa enorme e peluda surgiu sobre ele rosnando e o atingiu com um golpe na cabeça, que quase o fez desmaiar.

            Sentindo o sangue escorrer pelo rosto, Sandoval fez menção de tentar se pôr em pé, mas foi mais uma vez brutalmente golpeado. Percebeu então que alguns dentes estavam quebrados. Talvez o maxilar também. Caído no chão úmido pelo orvalho da noite e dominado pela dor, o fazendeiro conseguiu vislumbrar a face hedionda e animalesca da criatura que o encarava cheia de ódio e, em meio àqueles traços monstruosos, teve a impressão de distinguir algo de conhecido, algo que lembrava o rosto do andarilho que ele espancara ali mesmo, naquele local, dois dias antes. Ele queria gritar, de dor e desespero, mas as garras afiadas e bestiais que se cravaram em sua garganta lhe sufocaram a voz, para sempre.  

16 de ago. de 2022

A LENDA


 

Por Maria Ferreira Dutra

 

            Meu dia foi bem cansativo, mas produtivo, consegui terminar dois trabalhos. Já estou com outros na cabeça e entre essa noite e amanhã consigo terminar. Preciso me alongar, horas nessa cadeira velha e desconfortável acaba com as minhas costas. Que horas são!? 20h:31m. Vou tomar um banho e fazer um café. Morar só tem as suas vantagens, faço o meu tempo. Almoço, janto, acordo ou durmo a hora que eu quiser. Nada melhor que tomar um banho gostoso. 

            Caramba! O registro  do chuveiro está difícil de rodar! Apertei demais no último banho por conta do pinga, pinga. Ufa! Consegui abrir! Que coisa boa é sentir a água caindo em meu corpo e o cheiro do sabonete maracujá e capim-limão me trás  boas recordações. E a sete anos  desde que meu amor se foi, nunca troquei a fragrância.

            Durante os doze anos que vivemos juntos. Não tivemos filho. Não foi uma escolha nossa. O destino quis assim. Mas superamos isso e vivemos felizes até que um glioma  astrocitomas foi detectado em seu cérebro levando a minha felicidade embora definitivamente.

            Esses quase dez minutos de banho me fizeram super bem. Adoro camisetas brancas e shorts largos  para passar a noite, sempre que saio do banho, me visto com o corpo ainda molhado, pois me dá uma sensação refrescante por um bom tempo. Não acredito! Depois de tomar banho e me arrumar me deu vontade de evacuar. Que desgraça de papel vagabundo! Rasgou e sujei a minha mão. Preciso trocar essa toalha de mão, está bem encharcada!  Vou para a cozinha preparar o meu lanche. Um copo de água na cafeteira elétrica, duas fatias de pão de forma, dois ovos mexidos, isso é o suficiente para me alimentar.   

            – O que foi Paçoca?  Por que está me olhando com essa cara? Está com fome? Eu não coloquei a sua ração!?  Pare de gemer assim. Me solta, me solta! O que está acontecendo com você?  Para de latir! Você está no cio ou quer  fazer as suas necessidades? Pronto! Saia, saia! Eu já abri a porta! Para de me puxar para fora seu cachorro doido! 

            Eu nunca gostei de cachorro dentro de casa mas meu coração o acostumou assim e desde que ele se foi, eu sempre o mantive dentro de casa, não quis mudar nada, queria a sua presença em tudo, nada foi mudado. Esse cachorro acuado, não sai do meu pé, está com medo do quê? Pediu para sair e não saiu, está colado em mim.

            Bem agora que estou  com o  estômago forrado vou voltar a escrever mais um capítulo da minha história.  Onde parei? Ah Lembrei. O momento em que eu volto do meu café da noite. Então arrasto a cadeira me sento a mesa e olho pela janela, não era noite de lua cheia, mas na historia que escrevia, coloquei que era: "E a lua cheia aparecia no céu, mas logo fora escondida por uma  neblina formando uma cortina de  fumaça."

            Mas o que é é isso? Meu escritório, sumiu! Onde estou!? Na floresta!?  Que barulhos são esses! Paçoca, fique perto de mim.  Tudo que eu imaginava escrever,  estava saindo do computador e de forma descontrolada. Era tanto barulho de pássaros noturnos e pisadas que me causava medo uma verdadeira floresta sombria.

            A névoa se dissipou mostrando a lua que muito pouco conseguiu clarear o espaço. Me levantei da cadeira e tentei correr, mas fiquei sem ação ao ver um vulto laranja avermelhado.  Não consegui ver direito o que era  e minutos depois escutei o gemido muito forte e uns "creecccs, creecccs".  Parecia um dinossauro faminto estraçalhando e quebrando os ossos da sua presa. 

            Meu coração batia acelerado e eu tentava controlar a respiração quando senti algo bater em meus pés. Gelei! Abaixei a cabeça e fui abrindo os olhos vagarosamente. E  bem ali. Diante dos meus olhos. Vi caído a metade do meu cachorro e  o sangue escorrendo pelo chão. Com os olhos cheio d'água, joelhos, mãos e boca trêmulas, fui escorregando até sentar no assoalho.

            Vi pegadas no chão, parecia de um quadrúpede ou de um bípede. A minha vida toda escrevi sobre vampiros, monstros, extraterrestres, mas isso tudo eu sempre soube que era ficção. Mas agora, diante dos meus olhos, vejo essa criatura saindo do meu computador. E meu escritório se transformando em uma floresta sombria.

            Meus olhos estavam arregalados. O coração saltando pela boca. As minhas mãos grudadas na parede tentando de alguma forma me agarrar a algo. A névoa voltou a tornar escuridão total. Eu não conseguia ver um palmo na minha frente, mas consegui senti a sua forte  respiração que fedia a carne podre. Escutei um barulho de água caindo  e um cheiro muito forte que lembrava maconha. Entrava pelas minhas narinas, pensei que diabo é isso meu Deus! Um demônio que fuma!

            Seus passos foram se distanciando, tudo ficou em silêncio. Com o corpo arquivado  paulatinamente fui me levantando. Dei uns dez passos. Senti que havia pisado em algo molhado. Escorreguei e bati com o braço na luminária da mesa deixando-a cair. O barulho chamou a atenção  daquela coisa que, a largos passos, corria em direção ao barulho, eu escutava o estalar dos galhos e folhas secas sendo pisadas. Seu rosnado ecoava. E aquele barulho de água caindo que eu havia escutado, era a criatura marcando território. Me intrigava o cheiro da maconha em sua urina. Que tipo de criatura estaria em minha casa!?

            Senti um bafo próximo ao meu rosto e vi aqueles olhos cor de mel alaranjados brilhando como fogo e aqueles dentes pontiagudos diante de mim. Fechei os olhos a espera do meu fim, pois sabia que não tinha como escapar.  E sem dó, ela enfiou as suas presas em meu pescoço. Cheirou meu corpo é me possuiu. E foi através da sua mordida que me tornei essa terrível criatura e hoje tenho que me esconder para não morrer nas mãos dos malditos humanos.

            Na última noite de lua cheia sai para caçar e acabei virando a caça. Uma multidão começou atirar em mim e uma bala atingiu o meu peito. Cai no chão voltando a minha forma humana. Ouvi gritos de vitórias onde diziam  que conseguiram matar a criatura. Eu ali gemendo de dor e um silêncio tomou conta do local. As pessoas vão se aproximando com olhar surpreso e mão na boca, cochichavam entre elas.   

            Ouvi o barulho da ambulância chegando. Os paramédicos furam a multidão e me colocam dentro da ambulância  liga a sirene e saem em alta velocidade. Algumas horas mais tarde a ambulância foi encontrada na estrada e toda a equipe estava morta , com grave ferimentos pelo corpo. Rastro de sangue levava a polícia para dentro da mata, onde foi encontrado o corpo do  motorista que foi encontrado sem a cabeça e o braço esquerdo a uns 200m dos outros corpos. Eles não me encontraram, mas deixei uma mensagem vermelha na lataria da ambulância dizendo: "Eu sou a lenda Guará." A loba mais procurada.

 

Ilustração: Maria Ferreira Dutra
Edição de Imagem: André Bozzetto Jr