3 de jan. de 2021

NO REINO DE ORLOK

 

 

Por André Bozzetto Junior

           Friedrich disse aos amigos que havia aceitado aquela arriscada missão em função do dinheiro que lhe foi oferecido. Ao se despedir da sua idosa mãe, afirmou que a razão para empreender a inusitada viagem decorria da comoção que o suplicante pedido da Sra. Ellen lhe despertou. Contudo, nenhuma dessas alegações era verdadeira. O dinheiro oferecido não era suficiente para compensar os riscos da empreitada, e as lágrimas da moça não teriam condições de comover a tal ponto um coração já embrutecido pelas amarguras de uma vida repleta de dissabores. A razão pela qual o ex-marinheiro aceitara partir para a Transilvânia era tão somente a oportunidade que o destino lhe proporcionava de se colocar novamente diante daquilo que ele mais odiava no mundo: vampiros.

            Dois anos antes, mais precisamente em 1836, enquanto navegava pela costa turca do Mar Negro a bordo de um navio hamburguense, Friedrich viu toda a tripulação da qual fazia parte ser dizimada por uma dupla de vampiros que, ao que tudo indica, estava escondida dentro de caixas no porão da embarcação e decidiu sair de seu esconderijo quando se encontravam distante apenas dois quilômetros do porto de Sinop. Friedrich conseguiu se salvar atirando-se ao mar e nadando desesperadamente até a praia mais próxima, mas Arthur – seu único irmão e também integrante do grupo de marinheiros – não teve a mesma sorte e acabou vitimado pelas criaturas das trevas. Ao amanhecer, o sobrevivente andou até Sinop e encontrou o navio atracado e repleto de curiosos que observavam espantados os cadáveres espalhados pelo convés. Porém, tanto os vampiros quanto as caixas haviam desaparecido.

            Mesmo desistindo da vida de marujo e retornando para a sua Bremen, Friedrich não conseguia espantar de sua mente as imagens daquela noite horrenda, da mesma forma que nunca se esqueceu da tarde em que ouviu o capitão Müller dizendo que aquelas caixas haviam sido transladadas por ciganos provenientes da Transilvânia. E foram essas lembranças que o levaram a aceitar a proposta da moça de Wisborg, que lhe ofereceu uma soma em dinheiro para que ele fosse até o coração dos Montes Cárpatos à procura de seu marido, Hutter – um agente imobiliário que estava desaparecido desde que partira com destino ao castelo do conde Orlok a fim de lhe vender uma propriedade pertencente à agência do Sr Knock.

            Friedrich não compartilhou suas suspeitas com Ellen, pois não queria deixá-la ainda mais alarmada, mas tinha sérias desconfianças de que o jovem desaparecido havia encontrado o pior dos destinos ao se embrenhar em um covil de vampiros. Tal suposição tornou-se ainda mais forte quando, semanas depois, o ex-marinheiro chegou ao minúsculo povoado de Bistritz, no interior mais inóspito da cadeia montanhosa dos Cárpatos, e lá o taberneiro confirmou que, apesar dos avisos, Hutter seguiu na direção do castelo do conde Orlok e nunca mais voltou. O próprio Friedrich foi advertido – não só pela população de Bistritz, mas também por todos os camponeses e viajantes de origem sérvia e eslovaca que encontrou pelo caminho – para que não atravessasse o Passo Borgo, pois do outro lado do rio ficava a terra de nosferatu, o reino de vlkoslak. Porém, tudo o que ele queria era justamente a chance de encarar novamente alguns daqueles malditos seres sugadores de sangue, pois então ele estaria preparado. Tinha lido muito a respeito e na última vez em que estivera em Amsterdã teve a oportunidade de conversar longamente com um médico que encontrou em um bairro boêmio da cidade e que entendia bastante do assunto. A partir de então ele convenceu-se de que saberia exatamente como proceder no momento em que um vampiro cruzasse seu caminho.

            Estimulado por essas convicções, Friedrich ignorou as advertências dos habitantes locais e cavalgou solitariamente para o interior do vale que se estendia para além do Passo Borgo. Ao final do segundo dia de viagem após ter deixado o povoado de Bistritz, ele parou próximo ao cume de uma colina rodeada por uma paisagem que era ao mesmo tempo portadora de uma beleza exuberante e de uma sinistra e inquietante áura de mistério. O cavalo estava exausto e com a proximidade do entardecer a temperatura começa a declinar vertiginosamente. Pelos cálculos do ex-marinheiro, chegaria ao castelo do conde Orlok na manhã seguinte, mas, naquele momento, considerava importante a idéia de encontrar um lugar o mais seguro possível para descansar e passar a noite. Foi com esse intuito que ele se aproximou de uma pequena e escura caverna localizada poucos metros acima do local onde havia deixado sua montaria. Porém, o cheiro acre e nauseante que emanava do interior da cavidade rochosa o fez entender que se tratava de um lugar nada convidativo.

            Desconfiado, Friedrich pegou a sacola de couro que trazia presa à cela do cavalo, improvisou uma tocha e entrou na caverna. Sob a tênue luminosidade, sentiu seu corpo estremecer de espanto e excitação ao vislumbrar o corpo inerte de uma mulher deitado em um pequeno patamar rochoso. Não teve dúvidas de que se tratava de uma vampira imersa no nefasto sono dos mortos, à espera da noite para despertar e partir em busca do sangue alheio. Sem hesitar, o ex-marinheiro posicionou a tocha junto a uma grande pedra e aproximou-se da criatura. Tirou de sua sacola uma longa e pontiaguda estaca de madeira e uma espada sarracena cuidadosamente afiada. Com ambas as mãos, suspendeu a estaca no ar, respirou fundo e cravou-a no peito da vampira, que, por sua vez, despertou emitindo um grito horripilante e expondo suas presas alvas e ensanguentadas em uma careta repulsiva. Enquanto a morta-viva se debatia, tentando inutilmente arrancar a estaca de seu corpo, Friedrich empunhou a espada, deu dois passos para a direita, buscando o melhor posicionamento e, com um único e vigoroso golpe, decapitou o ser hediondo. Segundos depois, aquilo que um dia fora o corpo de uma mulher dissolveu-se completamente na forma de um pó escuro e esvoaçante.

            Cerca de vinte quilômetros rio acima, o conde Orlok abriu os seus olhos no exato instante em que a vampira foi apunhalada por Friedrich. Ele estava dentro de um caixão, a bordo de uma precária embarcação conduzida por uma dupla de ciganos que seguia através do rio na direção do porto de Varna, onde o esquife em que se encontrava escondido – bem como outros similares preenchidos com terra retirada de sua propriedade – seria transportado de navio até a cidade germânica de Wisborg.

            Embora vivesse recluso e solitário em seu obscuro e decadente castelo, o mestre vampiro mantinha-se telepaticamente conectado com uma vastidão de criaturas da noite que habitavam todo o vale circundante ao Passo Borgo, com o intuito de lhes obrigar a servi-lo em casos de eventual necessidade. Orlok viu através dos olhos da vampira que o estrangeiro era um sujeito letal. Provavelmente estava à procura do agente imobiliário que naquele momento vagava atordoado e desesperado pelos corredores de sua secular residência, em busca de uma rota de fuga. Sabia que, para evitar riscos desnecessários, seria preciso enviar alguém para eliminá-lo o quanto antes fosse possível.

            Friedrich estava preparando a fogueira na entrada da caverna quando viu a jovem se aproximando. Era inegavelmente muito bonita e usava um vestido que, apesar de simples, valorizava seus dotes corporais. O ex-marinheiro logo entendeu que não se tratava de uma vampira, pois ela passou com indiferença pelo círculo de cruzes e hóstias sagradas que ele havia elaborado ao redor do acampamento para protegê-lo durante a noite. Intrigado, ele perguntou quem era ela e o que fazia zanzando sozinha naquela região após o anoitecer. Contudo, a moça nada respondeu. Apenas sorriu de forma zombeteira e, diante dos olhos atônitos de Friedrich, metamorfoseou-se em uma enorme criatura de aparência lupina. Foi então que o ex-marinheiro lembrou-se que a expressão vlkoslak – utilizada para adverti-lo dos perigos da região – era tradicionalmente empregada para designar não apenas vampiros, mas também lobisomens. Com um misto de desespero e resignação, lamentou profundamente não ter tido o cuidado de trazer consigo alguma arma de prata.

            No mesmo momento em que a mulher-lobo provou do sangue quente e viscoso do estrangeiro, no interior de seu caixão o conde Orlok retorceu as feições bizarras de seu rosto em um gesto similar a um sorriso. A viagem até Varna seria bem mais tranquila a partir de então.
 
* Conto publicado originalmente no livro Draculea: O Retorno dos Vampiros - Vol. II (org. Ademir Pascale, All Print: 2010).    


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