3 de jan. de 2021

O PORCO DO INFERNO

 

Por André Bozzetto Junior

          Era uma tarde de verão típica da região oeste catarinense, ou seja, seca, poeirenta e extremamente quente. Eu seguia com minha motocicleta de Pinhalzinho – onde resido atualmente – para Maravilha, em um trajeto de aproximadamente 30 km através da BR-282. Na metade do caminho me dei conta de que não tinha colocado o cantil no alforje, e como a minha garganta estava tão seca quanto o asfalto, decidi parar para beber algo em um posto de combustíveis de beira de estrada localizado no distrito de Juvêncio.

         Com exceção do frentista, que estava atirado desanimadamente em uma cadeira não muito longe da bomba de gasolina, e da atendente do bar – que me vendeu uma garrafa de água mineral se movendo em câmera lenta – não havia mais ninguém por ali, como se o calor absurdo afastasse da rodovia até os mais insistentes viajantes.

            Quando eu saia do bar, dei de cara com um senhor idoso que se aproximava caminhando com evidente dificuldade e abanando o rosto ensopado de suor com a aba do chapéu.

            – Que calor do inferno! – resmungou ele. – Isso não é nada bom!

            – Realmente – concordei – Vi na televisão que se não chover logo a colheita do milho será péssima aqui na região.

            – Sim, a coisa está feia. – continuou o ancião, um segundo antes de se ater a analisar com indisfarçável interesse a estampa da minha camiseta do Iron Maiden.

            – Esse aí não é o demônio! – disse ele, apontando para o desenho do Eddie.

            – Não – respondi rindo. – Este monstrinho é apenas um mascote, o símbolo de uma banda de rock.

            – Ah, bom. Porque eu já vi o demônio, e ele não se parecia com esse bicho aí. Aquilo que eu vi tinha a cara de um porco. Mas não era a cara de um porco comum, não! Era a cara de um porco misturado com gente e uns olhos tão brilhantes que pareciam de fogo!

            – O senhor está tirando onda com a minha cara?! – perguntei, mesmo percebendo pela expressão do sujeito que ele não estava a fim de deboches.

            – Não! É verdade! Veja os pêlos do meu braço! Fico todo arrepiado só de me lembrar!

            – Então por que o senhor não me conta essa história? – questionei, já instigado pela curiosidade.

            – Você acredita em assombração?

            – Não sei se acredito, mas eu me interesso por essas histórias. Já li muito a respeito e, na verdade, até escrevo sobre algo do tipo.

            – Ah, mas essa história não está nos livros! – exclamou o velho, apontando para uma mesa na entrada do bar – Muitos a conhecem, mas ninguém comenta. Alguns porque não querem parecer estúpidos, mas a maioria tem mesmo é medo de tocar no assunto.

            Sentamos à mesa, o ancião fez um sinal à bodegueira e logo depois uma garrafa de cerveja e dois copos já estavam diante de nós.

            – E então? – indaguei em meio a um gole.

            – Bem, eu vou lhe contar a história sobre esse sujeito, mas não vou dizer o nome dele e nem onde ele morava, mas era aqui na região. – disse o velho, em tom de confidência.

            Consenti com um aceno de cabeça e ele então iniciou seu relato.

            – Isso aconteceu há muitos anos atrás, em um verão ainda mais quente do que este. A seca estava acabando com as plantações e já estava faltando água para os animais. Muitos colonos perderam tudo naquele ano. Sem ter o que fazer, as pessoas rezavam, faziam novenas pedindo a Deus para que mandasse a chuva. Mas havia esse sujeito – um homem esquisito que sempre foi diferente dos outros – ele decidiu que valia mais à pena pedir ajuda ao diabo do que a Deus. Ninguém sabe de onde veio, mas ele conseguiu um livro de bruxaria, um tal Livro de São Simão.

            – Não seria o Livro de São Cipriano? – questionei.

            – Ah, sim, isso mesmo! O Livro de São Cipriano, o da capa preta. Dizem que têm coisas terríveis nesse livro, até ensinamentos para invocar e fazer pacto com o capeta! Acho que era essa a intenção daquele infeliz, mas, acredite, ele era meio burro e deve ter feito alguma coisa errada, ou foi castigado por Deus por ter se metido com o tinhoso.

            – O que aconteceu?

            – Parece que foi durante o ritual... – explicou o velho, enchendo novamente o seu copo de cerveja – Era meia-noite e ele estava na estrebaria com velas negras e mais um monte de coisaradas. Durante o negócio ele deveria sacrificar um animal em oferenda ao diabo e escolheu um porco para isso, mas foi aí que algo saiu diferente do esperado.

            – Mas, o que aconteceu?! O que aconteceu?! – perguntei com enorme curiosidade enquanto esvaziava meu copo.

            – A esposa estava espiando e foi ela quem contou tudo que viu para os seus compadres: parece que o sujeito cortou a garganta do porco, bebeu e se banhou no sangue do bicho e, de repente, começou a se rolar pelo chão soltando uns gritos horríveis até que... Até que ele próprio se transformou num porco!

            – O quê?!

            – Sim! Se transformou num porco enorme, de uns dois metros e meio de comprimento por um metro e meio de altura! Depois disso ele saiu correndo e guinchando e desapareceu no meio do mato. Desesperada, a esposa pegou os filhos e fugiu para a casa dos compadres. Depois desse dia ninguém nunca mais viu o sujeito, pelo menos não na forma de gente. A mulher abandonou a propriedade e se mudou com as crianças para a casa de uns parentes em Concórdia. Depois de muito tempo apareceu por aqui um parente dela que vendeu o sítio para um pessoal de fora.

            – Mas e o porco?! Digo, o cara que se transformou no porco...?

            – Ah, aquele demônio nunca foi embora! Com o passar dos anos muitas pessoas aqui da região avistaram ele transitando à noite pelas estradas desertas ou mesmo invadindo as propriedades, destruindo as plantações e atacando outros animais! Eu o vi em uma noite de sexta-feira, quando voltava com minha caminhonete da fazenda de um amigo. Quando eu saí da estrada de terra e entrei no asfalto, percebi que estava com um dos pneus traseiros furado. Parei para trocar a uns sete quilômetros daqui, no sentido Maravilha, bem naquela subida que tem pista dupla e árvores grandes nos dois lados.

            O velho gesticulou para a bodegueira pedindo mais uma cerveja, acendeu um cigarro fedorento e continuou sua história.

            – Eu tinha acabado de retirar o pneu furado quando senti aquele fedor de merda de porco! Você sabe, rapaz, onde há porcos há cheiro de merda, e aquela catinga aumentava cada vez mais, quando escutei o barulho de mato quebrando e aqueles roncos que me fizeram logo lembrar da história do porco do capeta. Fiquei apavorado e corri para a cabine da caminhonete, bem na hora que aquele bicho do inferno apareceu na estrada! Jesus do céu! Era gigantesco, do tamanho de uma vaca! Ele correu na minha direção e deu uma cabeçada na porta, tão forte que amassou tudo! Foi naquela hora que eu espiei pela janela e vi que ele tinha cara de porco, mas que, ao mesmo tempo, parecia cara de gente! Parecia mesmo a cara daquele sujeito desaparecido!

            O ancião secou seu copo de uma só vez, limpou a boca na manga da camisa e voltou a tagarelar com grande excitação.

            – Não pensei duas vezes: liguei a caminhonete e acelerei fundo! Deixei para trás o pneu, macaco, chave de roda e tudo mais! Enquanto eu andava saia uma faisqueira danada lá de trás, mas só parei quando cheguei em casa. Gastei um dinheirão para consertar a roda e o eixo da caminhonete, mas pelo menos escapei daquele demônio!

            – Mas, se esse bicho é assim tão perigoso, ninguém nunca tentou acabar com ele? – perguntei enquanto enchia meu copo.

            – Claro que sim, mas não é fácil! O bicho se embrenha no meio do mato e desaparece sem deixar rastro! Conheço dois homens que já atiraram nele, mas as balas não fizeram efeito nenhum! Aliás, você sabe por que aquele posto da Polícia Rodoviária que ficava há uns dez quilômetros daqui foi abandonado?!

            – Bem, pelo que eu sei foi por questões estratégicas. O posto foi transferido para Maravilha, pois lá fica mais fácil para abordar contrabandistas que trazem mercadorias do Paraguai antes que eles tenham acesso à BR-158.

            – Mentira! – exclamou o velho, batendo com o copo na mesa – Essa é a desculpa que eles inventaram para não confessar que foram embora por medo do porco do inferno! Justamente naquele trecho onde está o posto abandonado é que ocorreu a maior parte das aparições daquele demônio! Os policias viram o bicho várias vezes e ficaram cagados de pavor! Por isso imploraram ao Governo para que o posto fosse transferido para outro lugar!

            Eu conhecia muito bem o posto abandonado da Polícia Rodoviária. Seguidamente, quando eu estava transitando de motocicleta pela região, costumava parar junto às ruínas do antigo prédio para descansar e beber uma água enquanto observava o movimento da rodovia. Confesso que sempre achei aquele lugar um pouco sinistro, embora não fizesse idéia do porquê. Pelo menos agora eu tinha um motivo para tal.

            – E ainda tem o caso daquela menina que desapareceu há um tempo atrás... – prosseguiu o velho – Alguns acham que ela pode ter sido seqüestrada por algum safado que passava pela estrada, outros acham que ela simplesmente fugiu. Mas, muita gente acredita, embora ninguém confesse, que ela foi atacada pelo porco. Eu também acredito nisso.

            – Mas e como é que as pessoas aqui da região conseguem conviver com isso? – questionei, enquanto sinalizava para que a atendente trouxesse outra cerveja.

            – Tiveram que se acostumar! – respondeu o ancião, em tom pesaroso – O porco aparece mais no verão, principalmente em épocas de seca, como essa que estamos enfrentando agora. Algumas pessoas costumam fazer oferendas. Deixam no meio do mato pratos de comida, mas tem de ser comida de gente: arroz, feijão, carne. Também deixam uma tigela com alguma bebida, como cachaça ou vinho. Assim, dizem que o demônio se mantém afastado das propriedades. Mas, nas noites mais calorentas, quando se circula por este trecho, não é difícil de se sentir o fedor e até mesmo ouvir aqueles guinchos e roncos medonhos! Pode apostar que no dia seguinte algum agricultor dos arredores aparece dizendo que teve parte de sua plantação destruída ou que algum de seus animais desapareceu do nada. Isso quando não há avistamentos! Ah, meu rapaz, pode acreditar: quem vê aquela coisa nunca mais esquece! Sem falar nos pesadelos, que continuam pelo resto da vida.

            Fiquei calado, pensando em o quão boa essa história poderia ser para um conto de terror. Não importava se o que o velho estava me dizendo era verdade ou não. Essa era uma história bizarra e macabra, bem do jeito que eu acho que devem ser todas as boas histórias de terror.

            – Você está indo para onde? – perguntou o ancião, interrompendo minhas reflexões.

            – Estou indo para Maravilha, mas logo pretendo voltar a Pinhalzinho.

            – Aquela moto ali na frente é sua?

            – É sim.

            – Então é bom se aligeirar. – sentenciou o velho – Acho que hoje não será uma boa noite para ficar circulando de moto pelos arredores do posto abandonado.

            Consenti com um aceno de cabeça e me levantei, seguindo para o caixa. Paguei, me despedi do velho e montei na motocicleta. Enquanto colocava o capacete, conclui que aquilo que eu precisava fazer em Maravilha não era urgente e poderia ser feito em outro dia. Entrei na rodovia e tomei o rumo de casa. Afinal, já estava entardecendo e o calor infernal que persistia fazia crer que seria uma noite quente, muito quente.

 

Notas do autor:

1) Este texto foi escrito em 2011;  

2) Depois de muitos anos, as ruínas do posto policial abandonado da BR-282 foram totalmente demolidas no início de 2013;


Um comentário:

  1. Anônimo2/10/2021

    Bem comédia essa história kkkkk Um porco !kkkkkk A história é boa!

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