Por André Bozzetto Junior
Ele usava vários disfarces
diferentes, dependendo da época e da circunstância. Já havia sido palhaço,
mágico, Batman e até Zé Gotinha. O importante era se aproximar de crianças e
adolescentes, conquistar sua confiança, distraí-los e, quando estivessem
sozinhos e vulneráveis, sequestrá-los. Às vezes até algo mais simples
funcionava. Por exemplo, durante a última Copa do Mundo – a de 1990 – naquela
fatídica noite em que o Brasil foi eliminado nas oitavas de final pela
Argentina, ele capturou um casal de gêmeos apenas usando uma camiseta da
Seleção Brasileira, cara pintada de verde e amarelo e peruca colorida. Agora
era a sua época favorita do ano, as vésperas do Natal, e a fantasia de Papai
Noel lhe garantia mais efetividade do qualquer outra. Suas atividades hediondas
ficavam tão mais fáceis nesses dias! Doces e promessas de presentes diversos
eram sempre muito eficazes.
Após a captura, suas vítimas eram
conduzidas a um prédio decadente e abandonado na área mais escura e degradada
da Avenida Farrapos, que cada vez mais adquiria status de local maldito e
mal-afamado, habitado apenas por um número crescente de prostitutas, drogados e
sujeitos de péssima reputação. Ou seja, um lugar perfeito para a prática de
todo o tipo de perversidade doentia a que costumava submeter os desafortunados
que caíam em suas mãos. Quando enjoava, depois de ter feito de tudo com os capturados, ele os matava
a golpes de faca e desovava os corpos em um lamaçal repleto de lixo no lado
norte da Ilha Grande dos Marinheiros, onde ninguém fazia questão de ir por
motivo algum.
Naquela noite ele tinha nada
menos do que quatro prisioneiros, um verdadeiro recorde, com o qual pretendia
passar horas e horas de sádica e mórbida diversão. Todos aparentavam ter por
volta de treze ou quatorze anos. Três foram capturados de uma só vez, no final
da tarde anterior, em uma parte deserta do Parque da Redenção. Dois garotos e
uma menina, que, pelas roupas que usavam, pareciam ser de classe média. Ele não
sabia o que o grupinho pretendia fazer lá isolado no meio das árvores
distantes. Talvez fossem fazer alguma sacanagem
ou apenas fumar um baseado, mas o que importava é que, naquele momento, estavam
ajoelhados no chão sujo daquele porão sombrio, tremendo e chorando baixinho,
temendo por suas vidas.
O quarto capturado havia sido
sequestrado apenas algumas horas antes, em um beco imundo e fétido entre dois
prédios antigos, também nos arredores da Redenção. Era um menino de rua,
maltrapilho e encardido, que se configurava no principal tipo de vítima do
falso Papai Noel, pois além desses indivíduos serem facilmente atraídos com
qualquer promessa vazia, também significavam a certeza da impunidade, uma vez
que ninguém ligava para o sumiço deles e muito menos se daria ao trabalho de
investigar seus desaparecimentos.
Ele entrou em um aposento anexo,
separado do resto do porão por uma pesada porta de metal, e retornou de lá
trazendo o menino de rua – quase que de arrasto – e o jogou no chão, ao lado
dos outros três que fungavam e enxugavam as lágrimas que escorriam por seus
rostos apavorados.
– Ho, ho, ho! – exclamou ele,
emulando com voz debochada a risada tipicamente atribuída ao Papai Noel, ao
mesmo tempo em que começou a balançar no ar de forma provocativa uma enorme
faca de lâmina reluzente – Agora este bom velhinho vai analisar quais dessas
crianças foram boazinhas e quais foram malvadas. Algumas vão ganhar um pirulito
e outras vão chupar um prego! Mas todas vão ter o que chupar! Ho, ho, ho!
As três primeiras crianças
passaram a chorar de forma cada vez menos contida. Apenas o garoto de rua
permanecia sério e calado, olhando fixamente para uma pequena janela de vidros
empoeirados através da qual invadia o recinto uma estreita faixa de
luminosidade esbranquiçada emanada pela lua cheia, que lá fora reinava soberana
sobre o céu poluído da cidade.
– Como é o seu nome, magricela? –
indagou ele, apontando a faca na direção do primeiro menino.
– Frederico... – respondeu ele, em
tom de voz quase inaudível.
– Frederico, que rima com penico!
Ho, ho, ho!
Apenas as risadas dele ecoavam
pelo porão.
– E o seu, loirinha? –
questionou, aproximando a faca do rosto da menina.
– Al... Alice... – respondeu ela
com voz trêmula.
– Alice, que rima com chatice!
Ho, ho, ho! Acho que já sei o que você vai ganhar para chupar, hein!
O choro então passou a se tornar
mais audível do que as risadas.
– E você, gordinho, como se
chama? – perguntou ele, erguendo a cabeça do garoto com um puxão nos cabelos.
– Miguel!
– Miguel, que rima com pastel!
Ho, ho, ho! Você tem uma pança de quem deve comer muito pastel mesmo! Mas deixa
eu te contar uma coisa: hoje de noite só quem vai comer algo vou ser eu! Ho,
ho, ho!
Ele sorriu com sádica satisfação
ao ver as três primeiras crianças chorando de forma cada vez mais copiosa.
Contudo, ficou intrigado ao ver que o menino de rua não parecia nada assustado.
Na verdade, ele parecia estar rindo também.
Tentando demonstrar a mesma
confiança de sempre, ele se posta diante do garoto esfarrapado.
– Meu Deus, como você é feio!
Parece que passou um trator em cima da sua cara! Diz aí, como é o seu nome,
feioso?!
O menino então o encarou nos
olhos e ele sentiu, de imediato, o sangue lhe gelar nas veias. Olhos inumanos o
fitavam com ódio e excitação, ao mesmo tempo em algum tipo de bizarra
metamorfose se processava naquele ser ajoelhado diante dele. Olhos demoníacos!
– O meu nome é... JARBAS! – urrou
de forma gutural aquilo que antes fora um garoto, enquanto se levantava,
prestes a ter o seu corpo totalmente transformado em um ser licantrópico,
enorme e aterrador.
Mesmo tomado pelo pavor, o dublê
de Papai Noel tentou esboçar um golpe, mas, com uma velocidade sobre-humana, o
monstro atingiu com uma violenta patada a mão que segurava a faca e a fez voar
ao outro lado do recinto, deixando um risco de sangue no ar ao longo de sua
trajetória. Ele caiu então de joelhos, gritando e tentando estancar com a mão
esquerda o sangue que jorrava do antebraço direito.
Isso durou apenas alguns
segundos. Logo ele sentiu os dedos, vigorosos como aço, do lobisomem se
fechando em torno de seu pescoço e o suspendendo no ar. Uma dor indescritível
lhe invadiu quando as garras da criatura começaram a rasgar seu ventre – de
forma lenta, mas vigorosa – e arrancar para fora seus intestinos.
Os gritos do sujeito, que mais
pareciam os guinchos de um porco sendo abatido de forma rude, finalmente
pareceram despertas as três crianças do traumático torpor em que se encontravam
mediante a horrenda cena que presenciavam e então, além de gritar, também se
puseram a correr. Removeram a tranca que bloqueava a porta de acesso à escada e
se precipitaram para fora do porão infernal.
Quando já estavam chegando ao
andar térreo daquele prédio sombrio e arruinado, Miguel, “o gordinho”, tropeçou
no último degrau e rolou de volta pela escada, indo parar novamente no interior
de seu cativeiro.
Procurando ignorar a dor que
parecia abranger cada centímetro do seu corpo, Miguel se esforçou para levantar
o mais rápido possível. Nesse meio tempo, de forma quase automática, seus olhos
se voltaram para o interior do porão e o que viu foi uma cena que passou a
habitar seus mais pavorosos pesadelos pelo resto de sua vida. O monstro estava
agachado, roendo tranquilamente algo que parecia ser uma perna humana. O Papai
Noel de araque estava deitado em uma viscosa e bizarra poça formada não apenas
pelo seu sangue, mas também pelos fluídos viscosos dos órgãos arrancados que
jaziam expostos para fora de seu abdômen dilacerado. Além da mão direita,
faltavam-lhe também as duas pernas, mas ele ainda estava vivo. Com a mão
esquerda, tentou fazer um aceno, como se pedindo ajuda. Mas, é claro, ninguém
iria ajudá-lo. Nunca mais.
Miguel correu de volta pela
escada, pulando os degraus de dois em dois, e quando chegou ao topo, ofegante e
dolorido, encontrou seus amigos, que
olhavam para baixo, como se tentando decidir o que fazer. Novamente juntos, os
três removeram sem grandes dificuldades algumas tábuas estrategicamente
posicionadas para barrar a entrada principal e, no instante seguinte, já
estavam na rua, chorando, gritando e correndo em busca de socorro na direção
dos faróis de um carro qualquer.