31 de dez. de 2022

ZINE NOTURNO Nº 02


 Por André Bozzetto Jr

 

No apagar das luzes de 2022, apresentamos a segunda edição do Zine Noturno, uma derivação do blog Relatos Noturnos, que, conforme ressaltamos no editorial de nosso primeiro volume, “visa se constituir em um espaço para a publicação não apenas dos meus próprios contos, mas também de autores já experimentados nas lides literárias – seja pelas vias independentes ou através de editoras profissionais –, bem como de escritores iniciantes que produzam material relevante aos fãs do gênero fantástico”.

Mantendo a intenção de uma publicação por ano, a proposta inicial para este nº 02 era fazer uma edição especial sobre vampiros, contando com contos inéditos de minha autoria, do colaborador Adriano Siqueira – uma das grandes autoridade brasileiras sobre o tema –  e de pelo menos mais dois autores a serem convidados. Porém, não deu tempo. Adriano Siqueira nos deixou de forma súbita e chocante no dia 02 de novembro deste bizarro ano de 2022, vítima de um fulminante câncer de estômago.

Com a tristeza e o desânimo provenientes dessa irreparável perda, o projeto ficou em vias de ser abandonado. Contundo, refletindo melhor, cheguei a conclusão de que, com uma providencial adaptação, a edição poderia ser publicada com conteúdo exclusivamente dedicada ao nosso grande amigo e colaborador, de forma a lhe render uma justa homenagem.

Nesta edição, trazemos três contos antigos e menos conhecidos de Adriano, que integram respectivamente três fases de seu trabalho, que ele mesmo classificava como “Histórias de Vampiros e Romance”, “Contos de Horror” e “Histórias de Aventura e Ficção”. Além desses, dezenas de outros contos e textos diversos podem ser lidos no blog que ele mantinha há vários anos, Contos de Vampiros e Terror (contosdevampiroseterror.blogspot.com). Por fim, incluímos também uma entrevista publicada aqui mesmo no Relatos Noturnos  em junho de 2021, a qual, por diversas vezes, ele me disse que gostou muito, pois contemplava, através das perguntas e respostas, as diversas eras da sua trajetória como escritor de Literatura Fantástica, fanzineiro – com o já cult fanzine Adorável Noite – blogueiro e ativista cultural. 

Que essa humilde publicação contribua, de alguma forma, para a memória do legado dessa grande figura que já está deixando saudades. Obrigado, Adriano, que você tenha uma eterna e “Adorável Noite”!

Para baixar gratuitamente e edição nº 02 do Zine Noturno, clique AQUI.

Boa Leitura!        

 
Adriano Siqueira (1965 - 2022)



29 de dez. de 2022

O RELATOR DA NOITE - ENSAIO Nº 01: SOBRE A REALIDADE DOS DEMÔNIOS

 

 

            Por O Relator da Noite

 

            Primeiro ponto: nada de formalismos por aqui, ok? Metodologia Científica e rigor estilístico em uma série de textos que se propõe a tratar de uma infestação de demônios nos dias atuais me pareceria no mínimo pretensioso, para não dizer patético. E talvez, mesmo assim, essas linhas soem exatamente desse jeito, pretensiosas e patéticas, mas vou deixar isso para você julgar depois da leitura. Outra coisa importante: não interprete nada do que ler aqui como uma tentativa de convencimento ou de expressão da Verdade [será que existe alguma?]. Trata-se apenas da apresentação de alguns pontos e o compartilhamento do meu entendimento sobre os mesmos. Procure emular, durante a leitura, a sensação de estar no boteco da esquina, escutando a conversa de um amigo esquisito e meio maluco e,  assim, provavelmente você estará no estado de consciência adequado para absorver o máximo possível do que estou tentando expor aqui. Então, encha o seu copo e vamos lá.

            Obviamente, precisamos começar definindo o que são os “demônios” mencionados no título deste texto, uma vez que, por si só o termo pode ter um monte de significados diferentes, dependendo do contexto cultural ou do momento histórico a que se refere. Acredito, inclusive, que a questão da linguagem é o maior desafio a quem se propõe a estudar de forma séria e profunda as mais variadas temáticas relacionadas ao Ocultismo. Concordo com Robert Anton Wilson quando este argumenta que as mais variadas Ordens, seitas, doutrinas, filosofias, religiões e até a Ciência estão, na maior parte do tempo, falando dos mesmos assuntos, porém, fazendo uso de métodos e  jargões próprios, o que dificulta o estabelecimento de paralelos, sendo esse problema agravado pela insensatez de cada uma dessas vertentes em ficar despendendo muito tempo e esforço tentando provar que a sua forma de interpretação é mais correta que todas as outras.

            Feita essa digressão, esclareço que os “demônios” abordados neste ensaio não são espíritos de pessoas mortas, aos moldes do que é apregoado, por exemplo, no Kardecismo, mas sim, formas-pensamento. Contudo, também não são formas-pensamento originadas por seres humanos como nós [embora, ao longo do tempo, tenham sobrevivido se retroalimentando da energia psíquica da humanidade], mas sim por seres que habitaram nosso planeta desde muito antes de qualquer coisa semelhante a um homo sapiens andar sobre a Terra. Essas formas de consciência, de existência essencialmente etérica, atuavam com amplo domínio na matriz astral do nosso mundo, sendo responsáveis diretos pelas emanações de muitos componentes da realidade que, ao longo das eras, viriam a se materializar fisicamente na natureza. Talvez a forma  mais  utilizada para se referir a estes seres em diversas vertentes ocultistas seja como Elementais, mas, particularmente, não gosto dessa designação, porque o senso comum já a perverteu ao ponto de se tornar genérica, utilizada para classificar uma infinidade de entidades [por vezes completamente diferentes umas das outras] que habitam o Plano Astral. Sobre essas consciências primordiais não iremos nos aprofundar neste texto, mas, recomendo fortemente a leitura da série de livros que compõe A Doutrina Secreta, de Blavatsky, além de obras teosóficas de outros autores como Charles Leadbeater e, principalmente, Franz Hartmann. Aproveito para esclarecer que não sou um seguidor da Teosofia, muito embora reconheça, após mais de duas décadas de estudos e pesquisas, que os teosofistas me parecem ser os que chegaram mais longe na abordagem do tema sobre o qual nos debruçamos neste ensaio.

            Blavatsky chama essas inteligências seminais de Pitris e sobre elas afirma que “não são os antepassados (diretos) de pessoas atualmente vivas, mas sim, os antepassados da humanidade atual, uma raça original, ou seja, os “espíritos” de raças humanas que precederam a nossa raça na grande escala da evolução descendente (de muitos milhões de anos)”, ou seja “constituíram uma transição na criação da raça precedente, passando de raças humanas etéricas para a presente linhagem humana material”. Hartmann complementa alegando que “essas forças elementares são os Devas do Oriente, os Elohim da Bíblia, Afrites dos persas, Titãs dos romanos e Egrégores [ou Vigilantes] do Livro de Enoque” e que “são os agentes ativos do cosmos cuja atuação pode beneficiar ou tolher o homem, segundo as condições em que operam”. Aqui começamos a nos aproximar do ponto-chave de nossa reflexão. “Essas forças elementares podem beneficiar ou tolher o homem, segundo as condições em que operam”, afirma Hartmann. Os motivos pelos quais esses seres atuariam sobre nós dão margem para muita especulação, quiçá ocupariam um livro inteiro. Para quem gostaria de se aprofundar, indico a leitura de Magia Aplicada, de Dion Fortune e O Tesouro Arcano, de João Anatalino Rodrigues, obras onde aparece a noção de que toda forma de consciência [encarnada ou desencarnada] que está ou algum dia já esteve ligada à psicosfera da Terra se constitui em um agente ativo, seja de forma consciente ou [na grande maioria das vezes] inconsciente da própria trajetória de desenvolvimento do planeta, atuando na criação [ou destruição?] dos mais variados aspectos da realidade. Como toda consciência deixa marcas indeléveis no Plano Astral, aqueles que habitaram esse mundo antes da humanidade deixaram um substrato energético, forças primais, que, quando canalizadas ou manifestada pelos seres humanos, os induzem à ação, que pode ser construtiva ou destrutiva.

            Em Magic: White and Black, Hartmann cita uma carta a Sinnett onde argumenta que todo pensamento, uma vez na Esfera Astral, torna-se uma entidade ativa ao associar-se, por aglutinação, a um Elemental, ou seja, a uma das forças semi-inteligentes autônomas – criaturas concebidas através da consciência – por um período de tempo curto ou longo, proporcional à intensidade original da ação cerebral que os engendrou. “Destarte, todo bom  pensamento perpetua-se e continua a exercer seu poder benéfico, ao passo que os maus pensamentos subsistem como demônios malévolos”. O autor alemão ainda acrescenta que algumas dessas formas-pensamento possuem consciência própria e são autoconscientes da própria existência, mas em circunstâncias normais não possuem maior inteligência que um animal e não podem, portanto, agir inteligentemente. “Elas seguem o empuxo da atração cega da mesma forma que a limalha de ferro é atraída por um ímã; onde quer que haja condições propícias ao seu desenvolvimento, para aí elas são atraídas”. Contudo, se nessas formas não inteligentes for inculcado o princípio de inteligência que procede do homem, elas tornam-se inteligentes e passam a agir como tal. Assim, todas as emoções que despontam no homem podem combinar-se com forças astrais da natureza, a ponto de criar entidades viventes e ativas. “Esses elementais vivem no reino da alma do homem, e enquanto ele viver, fortalecem-se e engordam, pois vivem do princípio vital dele e nutrem-se dos pensamentos que emite”.

            Na obra Elementargeister, Hartmann complementa afirmando que um pensamento-entidade que habite o Plano Astral, proveniente de uma consciência que pode até mesmo tê-lo emanado em alguma era remota ou algum lugar longínquo pode influir em outra parte do mundo sobre este ou aquele homem predisposto, amadurecer como pensamento em sua mente, e tornar-se operante dentro dele. “Assim surgem igualmente as invenções e são iniciados crimes. Uma ideia trazida à existência é algo vivo, e nem a morte natural, nem a execução daquele do qual ela proveio pode exterminá-la”. Mesmo que seu hospedeiro morra na plano físico, o demônio continua existindo no Plano Astral e, em algum momento, encontrará outro veículo para se manifestar na matéria.

            Acredito que agora já temos uma noção mais clara sobre o tipo de demônios dos quais estamos falando aqui. São formas-pensamento muito mais poderosas [talvez infinitamente mais poderosas] do que aquelas criadas cotidianamente, consciente ou  inconscientemente, por pessoas como eu ou você, pois nós manipulamos o substrato moldável da substância astral formada pela coletividade da energia psíquica emanada ad infinitum pelos seres humanos ao longo das eras, enquanto que os demônios aos que nos referimos são formas-pensamento negativas emanadas por consciências primordiais, mas antigas do que a humanidade tal como conhecemos, e tendo por matéria-prima a própria substância basilar, a energia seminal que compõe a essência daquilo que chamamos de realidade. E caso esteja se perguntando de onde tudo isso provém, eu só posso dizer que acredito ser diretamente do Ato Criador [quiçá se desdobrando em inumeráveis níveis descendentes] que você pode chamar de Big Bang, Fiat Lux, “Deus” [de acordo com o seu cabedal de crenças] ou como preferir – perceba o problema da linguagem novamente – pois, para mim, sempre será algo incognoscível.

            Os motivos pelos quais as consciências primordiais emanaram essas formas-pensamento demoníacas é algo sobre o qual só podemos especular, e quase todas as tradições místicas e religiosas fizeram isso ao longo do tempo, através de infindáveis mitos, lendas, alegorias ou proposições filosóficas. Se atendo ao viés mais pragmático, o que me parece inquestionável é que, em maior ou menor intensidade, esses demônios têm feito parte da vida de todos os seres humanos que um dia já nasceram neste planeta. E como os demônios interagem conosco? A resposta sempre me pareceu tão simples  quanto impactante: os demônios atuam sobre as nossas emoções. Para Franz Hartmamm, eles são as emoções [negativas], conforme ilustra em Elementargeister, afirmando que os demônios “buscam possuir os corpos dos tolos e idiotas e se o conseguirem, neles permanecem até que sejam expulsos por uma vontade reta e firme”, acrescentando que “a explicação para tal fenômeno é a de que eles próprios são formas de desejos e de ideias”. Na visão do autor, esses seres “passeiam dentro de nós, fazem surgir este ou aquele afeto, causam toda sorte de paixões, dominam nossa razão, influem em nossos desejos e pensamentos”. Em seu entendimento, os demônios são “forças anímicas” que podem ser conhecidos pelo homem comum através da auto-observação, pois “sua própria natureza é como uma espécie de hospedaria, na qual esses seres entram e saem”. E conclui afirmando que “todo desejo, toda paixão tem sua causa em um espírito que o possui ou exerce influência sobre ele”, ou  “em outras palavras, os seus próprios sentimentos de desejo são resultados de uma forma de atuação, trazida à vida dentro dele mesmo, despertada por impressões externas, plasmada através de sua imaginação em efígies que lhe vêm à mente”.

            Em Magic: White and Black, Hartmann explica que essas formas-pensamento são tão poderosas que podem não apenas serem sentidas, como também serem vistas por aqueles dotados de visão astral, de tal maneira que “têm sido descritas em formato de serpentes, tigres, porcos e lobos famintos” mas que “frequentemente apresentam-se como bestas com cabeças humanas ou homens com membros animais” e, em síntese, “suas formas variam ao infinito pois existe uma enorme variedade de combinações entre luxúria, avareza, ganância, amor sensual, ambição, covardia, medo, terror, ódio, orgulho, vaidade, presunção, estupidez, volúpia, egoísmo, ciúme, inveja, arrogância, hipocrisia, astúcia, sofisma, imbecilidade, superstição, etc. O autor complementa que “cada uma dessas forças corresponde a um desejo animal [me parece que “instinto” seria um termo mais adequado aqui], e se permitirmos que cresçam, tomam a forma do ser que corresponde à sua natureza”. Seriam as tais “efígies moldadas pela mente” citadas anteriormente, o que explicaria porque um mesmo demônio pode se  manifestar de formas variadas para diferentes indivíduos, uma vez que a aparência seria apenas uma roupagem para a força se manifestar, constituída do próprio substrato mental de cada um. Quando estes seres são perpetuados pela tradição com uma roupagem específica ou até mesmo cultuados de forma grupal, acabam por constituir poderosíssimas egrégoras.

            Hartmann frisa que esses seres “não são necessariamente entidades racionais conscientes, mas podem manifestar-se por meio de organismos conscientes dotados de razão; não são pessoas, mas personificam-se sempre que encontram expressão em formas individualizadas”, pois “amor e ódio, inveja e beneplácito, luxúria e ganância não são pessoas, mas personificam-se em formas humanas ou animais”, de tal forma que “uma pessoa extremamente maliciosa torna-se a própria encarnação da malícia”.

            Se observarmos sob essa ótica, dos demônios como forças negativas primordiais que se manifestam nas pessoas através das emoções, instigando e ao mesmo tempo se retroalimentando da energia psíquica emanada por padrões específicos de sentimentos e pensamentos humanos – de tal forma que escraviza o indivíduo e fortalece o demônio – então não é difícil traçar paralelos [com maior ou menor grau de precisão, dependendo do caso e do enfoque adotado] entre o que é apregoado nas mais diversas vertentes ocultistas, místicas ou religiosas. São os demônios das Qliphoth na Kabbalah, os diversos Mâdan na Teosofia, os Ajogun no Candomblé e em outros cultos de raiz yorubá, os Demônios dos Sete Pecados Capitais no Catolicismo, a personificação dos Vícios combatidos na Maçonaria [Jubelas, Jubelos e Jubelum], o entendimento acerca dos Arcontes em algumas seitas gnósticas, e, mais recentemente, os Dillodokers, além de inúmeras outras denominações adotadas pelas mais diversas sociedades em diferentes realidades culturais ao longo do tempo.

            Algum leitor pode estar se perguntando: dentro dessa mesma perspectiva em que tanto falamos dos demônios, não teríamos algo a dizer também sobre os anjos? O nosso entendimento vai ao encontro de tudo o que já foi exposto até aqui. Os anjos têm uma existência tão real quanto a dos demônios e sua natureza é análoga a deles, mas, obviamente, com a vital diferença de que os seres angelicais atuam através das emoções positivas, instigando nos homens, por assim dizer, sua propensão a agir em prol da harmonia e da evolução. Se os demônios podem ser entendidos como as forças destrutivas da realidade [prefiro usar o termo “realidade” ao invés de “natureza”, pois essa última expressão poderia passar ao leitor desavisado a impressão de algo que se refere aos elementos ecológicos, puramente físicos, enquanto, na nossa interpretação, há uma abrangência tanto física quanto metafísica] então os anjos são as forças construtivas.

            Para fins práticos, me parece que Allan Kardec estava certo ao afirmar que a melhor forma de afastar a influências dos espíritos obsessores é atraindo a presença dos espíritos benévolos. Pragmaticamente, o que vale para os espíritos dos mortos vale também para os anjos e demônios. No trato com esses habitantes do Plano Astral, é muito fácil perceber que nossos pensamentos fazem com que eles nos notem, nossos sentimentos os atraem e nossas atitudes os tornam nossos aliados ou algozes, dependendo do caso. Na interação com esses seres metafísicos, o uso de rituais e atos  magísticos é perfeitamente funcional, posso assegurar por experiência própria, contudo, o contato com as forças de outros planos da existência ocorrem até mesmo em meio a situações do cotidiano, ainda que a grande maioria das pessoas não se dê conta disso.

            Pela mais pura afinidade [semelhante atrai semelhante], nossos padrões de pensamentos, sentimentos e atitudes definem se teremos anjos ou demônios atuando em nossas vidas. Por ser algo tão simples, é também tão perigoso. Acredito que nunca foi tão fácil como nos dias atuais encontrar desculpas para virar as costas à “porta estreita que conduz à vida [harmoniosa]” e se atirar através da “porta larga que conduz à perdição” [Mateus 7: 13-14]. Mantendo a exemplificação dos Evangelhos, existe uma passagem que ilustra perfeitamente essa lógica de que, para se manter longe da influência dos demônios, a conduta adequada é o melhor caminho. Em Mateus 17, Jesus é chamado para expulsar um demônio que possuía o corpo de um jovem e que os apóstolos não conseguiam exorcizar. Depois de livrar o rapaz do referido ser, Jesus explicou aos seus discípulos que “essa casta de demônios só se expulsa pela oração e  pelo jejum”. Não precisamos nos ater aqui sobre o quanto pode haver de simbólico ou  alegórico nessa passagem. Acredito que o ensinamento está bastante claro, até ao leitor mais desavisado. E, veja bem, quando leio as palavras de Jesus nos Evangelhos, eu não as tomo como moralismo. Não acredito na possibilidade de perfeição nesse plano da realidade em que habitamos e não me vejo em condições de pregar nada a ninguém. Lembre-se, estou apenas compartilhando o meu ponto de vista sobre o assunto. Posso dizer com segurança que nunca roubei e nunca matei, mas com o resto dos “pecados” mencionados na Bíblia, já devo ter me debatido com todos em algum momento da vida, e com alguns ainda me debato cotidianamente. O que me vêm à mente aqui é um entendimento aos moldes daquela máxima do Estoicismo, onde se afirma que “viver bem é viver de acordo com a natureza”. Ora, a natureza, em seus aspectos físicos segue uma lógica causal inexorável. Corte uma árvore e você terá menos sombra e, provavelmente, mais calor; Se alimente mal e seu corpo começará a perder desempenho. Não faça sexo e você não deixará descendentes. Causalidade pura. No aspecto metafísico, a lógica é exatamente a mesma. Quer gostemos disso ou não, nossos pensamentos, sentimentos e atitudes atrairão energias [e consequências] correspondentes, sejam elas positivas ou negativas.

            Sei que muitas pessoas acreditam que tudo que é muito simples tende a não funcionar, mas atente para o fato de que simples não significa necessariamente fácil. É claro que os métodos mais elaborados são eficazes. Frequento regularmente um terreiro de Umbanda e posso afirmar que os “descarregos” realizados lá funcionam maravilhosamente bem. O que acontece algumas vezes é que a pessoa chega ao terreiro com um “encosto” [que pode ser um espírito desencarnado ou um demônio envolto em suas respectivas energias negativas] e então ela passa pelo descarrego e essas forças maléficas são removidas, saindo dali com seu campo áurico purificado. Contudo, se ela não modifica os padrões de pensamentos, sentimentos e atitudes que atraíram o ser negativo anteriormente, é só uma questão de tempo até ela atrair outro semelhante. É como Jesus explica em Mateus 12: 43-45, citando o caso de um demônio que foi expulso de um homem a quem possuía mas que, tempos depois, ao perceber a porta aberta e convidativa, retornou trazendo consigo outros sete demônios ainda piores do que ele.

            Eu gostaria de falar mais sobre a nossa relação com os demônios da atualidade, pois nesse momento onde a desesperança, o hedonismo autodestrutivo e a intolerância deixam marcas tão profundas na sociedade contemporânea, o tema me parece pertinente. Porém, vou fazer isso em um próximo texto, pois este já está muito longo e nós sabemos que o brasileiro médio não é afeito à leitura e, da mesma forma, pesquisas recentes têm mostrado que, quanto mais extenso for um texto, menos leitores ele vai ter.

 

PS: Para quem pode estar se perguntando se eu sou cristão, o que eu posso responder é que tenho grande interesse principalmente pelo aspecto gnóstico dos ensinamentos de Jesus, pois acredito que suas palavras nos deixaram um bom roteiro de como ter pelo menos uma vida minimamente digna neste plano da existência e para, quem sabe, depois do desencarne, não precisar mais voltar para esta realidade que é um autêntico “Carandiru Espiritual”, conforme a expressão utilizada por um dos meus professores.     

        

26 de nov. de 2022

LIVRO DE SÃO CIPRIANO: O PERIGO REAL

 

 

Por André Bozzetto Jr


 

            Acordei de súbito com o coração acelerado e uma sensação estranha. Estava tendo um sonho esquisito, mas não conseguia lembrar o que era. Só lembrava que era sobre o Guga. Olhei para o rádio-relógio na cabeceira da cama. 3:33 da tarde. Como a minha família tinha o hábito de ir a praia somente de manhã, eu costuma tirar um cochilo depois do meio-dia. Quando acordava ia para o centro, jogar fliperama, dar uma olhada nas bancas de revistas e encontrar o pessoal para bater um papo, quase sempre sobre bandas de rock. E garotas, é claro.

            No toca-discos rodava em volume baixo um vinil do Iron Maiden:

When you know that your time is close at hand

Maybe then you'll begin to understand

Life down here is just a strange illusion

(Quando você souber que o seu tempo está próximo

Talvez então você comece a entender

Que a vida aqui embaixo é apenas uma estranha ilusão)

 

            O disco era do Guga. Ele tinha todos os álbuns do Iron Maiden, até o recém-lançado Somewhere in Time. Será que foi por causa do sonho ou uma associação com a música que me fez ficar pensando no Guga? Não sabia, mas decidi que iria até a casa dele.

            Quando saí do quarto vi que não havia ninguém. Um bilhete em cima da mesa da cozinha avisava que os meus pais e meus dois irmãos menores tinham ido ao mercado e os meus avós foram fazer uma caminhada. Na nossa família sempre foi assim, íamos para a casa de veraneio em Tramandaí um pouco antes do natal e ficávamos até o fim de janeiro. Minha mãe era dentista e o meu pai era funcionário do Banco do Brasil. Não sei exatamente o que ele fazia, mas era do alto escalão administrativo. Ele tinha um amigo inseparável chamado Luiz, que era seu colega de emprego. Luiz também possuía três filhos e o mais velho deles, Guga, tinha a minha idade. Frequentávamos a mesma escola em Porto Alegre e passávamos as férias de verão nos mesmos períodos em Tramandaí. Ou seja, estávamos quase sempre juntos. Porém, nos últimos dias não tinha mais visto o Guga. Ele muito raramente ia à praia, mas já fazia quase uma semana que também não aparecia no fliperama e nem nos outros locais frequentados pelo pessoal da nossa idade. Os irmãos mais novos dele vinham todos os dias à nossa casa brincar com os meus, mas ele não deu as caras. Confesso que era um cara meio esquisito, o meu amigo Guga.

            Peguei a bicicleta e saí. A casa do Guga ficava distante apenas quatro quarteirões da nossa, mas antes de ir para lá passei pelo centro, para me certificar de que ele não estivesse em algum dos locais de costume. Não estava.

            Quando cheguei, vi que o carro do seu Luiz não estava diante da garagem. A casa parecia deserta. Deixei a bicicleta na entrada e toquei a campainha. Dentro de poucos segundos, Guga abriu a porta de supetão. Estava com os cabelos desgrenhados e olhos arregalados. Parecia mais estranho que de costume.

            – Até que enfim! – disse ele, parecendo irritado – Por que demorou tanto?

            – Como assim? – questionei.

            – Estou desde ontem ligando para a sua casa!

            – Ninguém me falou que você tinha ligado! Também não atendi nenhuma ligação sua, né... Se queria falar algo tão urgente por que não foi até lá?

            – Entre, entre! Vou lhe contar tudo. – disse ele, parando com as reclamações.

            Do lado de dentro a casa estava escura. Aparentemente todas as janelas e cortinas estavam fechadas. Guga me fez sentar no sofá e sentou sobre a mesinha da sala, bem diante de mim. Antes de começar a falar ficou me encarando por alguns segundos que pareciam intermináveis. Havia algo perturbador em seu olhar e eu não sabia se era medo ou loucura. Estaria chapado? Nunca soube que Guga usasse drogas.

               – Eu preciso que você acredite em mim. – disse ele, em tom de cochicho.

            – Fala logo, cara! O que está acontecendo? – rebati, já começando a ficar nervoso.

            – Ok, ok! – resmungou ele, fazendo gestos para que eu falasse mais baixo – vou te contar tudo desde o início.

            – Onde estão seus pais? – perguntei, olhando ao redor.

            – Não sei. Eles nunca ficam em casa de tarde. Devem ter ido à praia ou levado meus irmãos no parque de diversões em Imbé.

            – Você está drogado?

            – Não! – respondeu ele, se descabelando em um gesto teatral de irritação.

            – Então fala logo que porra está acontecendo!

            Guga fechou os olhos e respirou fundo. Parecia estar tomando coragem para falar, ou escolhendo as melhores palavras.

            – Você sabe que eu nunca fui de pegar muita mulher, né...? – disse ele, se esforçando para parecer calmo – Por causa de eu usar brinco, cabelo comprido e camisetas de banda. Essa merda do preconceito...

            Na verdade, eu discordava. Guga pegava pouca mulher, mas não era por causa do visual rockeiro. Conhecia outros caras com o mesmo perfil que estavam sempre rodeados de garotas. O problema dele era ser esquisito e feio mesmo. Mas é claro que eu não iria dizer isso.

            – E você sabe que eu sempre fui louco pela Vanessa, né...?

            Vanessa era filha de outro colega de trabalho dos nossos pais e que também sempre passava as férias de verão em Tramandaí. Ela era realmente muito gostosa e, obviamente, não dava a menor bola para o Guga. E nem para mim.

            – Sim, cara. O que essa sua doideira tem a ver com a Vanessa? – perguntei, impaciente.

            – Antes deixa eu te contar outra coisa... – disse Guga, chacoalhando os cabelos e levando as mãos à cabeça, como se estivesse se esforçando para organizar as ideias – Outro dia eu desci até o porão. Nem me lembro mais o que estava procurando, mas era algo sem maior importância. Acabei encontrando lá embaixo uma caixa cheia de livros do meu tio, Ângelo. Havia coisas bem sinistras lá: livros de demonologia, de rituais, alguns escritos em outros idiomas... e tinha também o Livro de São Cipriano. Já ouviu falar?

            – Acho que é um livro de feitiços e bruxarias. – respondi, começando a ficar ainda mais desconfortável com o rumo da conversa.

            – Isso mesmo! O Livro de São Cipriano, o da capa de aço!

        – Não me admira que o seu tio tenha ficado louco! – resmunguei – Mexendo com essas coisas!

            – Não foi por isso que ele ficou louco. – argumentou Guga – Foi por causa da drogas. Consumiu tanto que fritou o cérebro.

            – Tem certeza?

            – Bem, deixe para lá, não tem importância. – rebateu ele – O fato é que eu folheei o livro e achei um feitiço para... trazer a mulher desejada. Exigia um monte de ingredientes bizarros e que não seriam fáceis de conseguir, mas pensei: por que não...

          – Cara! Não acredito que você fez isso! – gritei, me levantando.

            – Calma, calma! – disse Guga, me puxando pelo braço e me fazendo sentar de novo. Agora eu percebo que agi errado, muito errado. Mas, naquele momento, eu ficava imaginando a Vanessa peladinha na minha frente e...

            – Você ficou louco de verdade! – disse eu, me levantando para ir embora de novo.

            – Não! Por favor escute, escute! – insistia Guga, me puxando novamente pelo braço e parecendo cada vez mais alucinado – Eu fiz o ritual na segunda-feira de noite. A princípio nada aconteceu, nem na terça de manhã. Mas, de tarde, depois que todo mundo tinha ido à praia, ela apareceu aqui.

            – Ela quem? – perguntei, sentindo o coração acelerar.

       – Vanessa! Tocou a campainha e, quando abri a porta, simplesmente entrou e foi tirando a roupa! Transamos aí mesmo, no sofá onde você está sentado.

            Tive um impulso de levantar do sofá, mas não consegui. Também não consegui dizer nada. Aquilo me parecia tão absurdo que chegava a dar medo. Estava com a sensação de que algo terrível ainda estava por vir no meio daquela loucura toda.

             – Cara, preciso confessar que, apesar de estranho, foi maravilhoso! – continuou Guga – E depois ela se vestiu e foi embora, sem dizer uma palavra. Eu sei que parece esquisito, mas fica pior, porque no dia seguinte ela apareceu de novo! Tem vindo todas as tardes depois que a minha família sai de casa!

            Comecei a suar. Sentia minha garganta ficando seca. De repente, senti uma vontade tremenda de estar em casa, na segurança do meu quarto. Ou melhor, na segurança do meu quarto lá na minha casa oficial, em Porto Alegre.

            – Só que a partir do segundo dia, as coisas foram ficando cada vez mais bizarras... – continuava Guga, aparentemente sem perceber o meu desconforto – Ela queria fazer de tudo, entende? Digo, tudo mesmo, como nos filmes pornô! No começo achei legal, lógico, mas começou a passar do ponto... Ela queria que eu batesse nela, que batesse com força, e me batia também! E parecia que nunca ficava satisfeita!

            Guga ergueu a sua surrada camiseta com a estampa do disco Born Again do Black Sabbath e virou de costas.

            – Está vendo esses arranhões? Parecem navalhadas, né? Mais isso foi só o começo!

            Eu queria dizer que não consegui ver as tais marcas, mas ele simplesmente não parava de falar, me encarando com aqueles olhos insanos.

            – Ontem ela quis pegar uma faca! – disse ele, com voz trêmula – Enquanto a gente transava ela começou a se cortar! E me cortou também! Veja! Tá vendo essa cruz invertida aqui no meu peito?! Foi ela quem cortou!

            Tentei olhar mais de perto, mas ele já tinha abaixado a camisa de novo. Agora lágrimas escorriam dos seus olhos.

            – Quando ela fez isso eu saltei da cama e disse “pra mim chega”! Então ela me socou no nariz, cuspiu na minha cara, me chamou de puto, de veado, de frouxo e disse que se eu não fizesse tudo que ela mandasse, iria dizer para todo mundo que eu a estuprei!

            Guga estava chorando. Chorando de verdade, feito uma criança.

            – Sabe o que eu acho? – questionou ele, tentando enxugar as lágrimas – Que o ritual liberou um demônio que entrou no corpo dela e agora está fora de controle.

            Eu estava completamente apavorado. Não por causa da história toda de demônio, mas por ver que o meu amigo havia ficado louco. Iria parar em um hospício, como o seu tio, que já estava lá há anos.

            – Você não acreditou em nada, não é mesmo? – resmungou Guga, em tom de desespero – Mas se você visse, então acreditaria, né?

            – Ela vai vir hoje também? – perguntei com um fiapo de voz, fazendo muito esforço para disfarçar a angústia.

            – Não, meu amigo. Ela já está aqui.

 

*

            – Ela já está aqui...? – questionei, olhando ao redor, enquanto um arrepio percorria minha espinha.

            – Sim. – respondeu Guga, com o medo estampado no olhar – Está dormindo no sofá do porão... Comecei a levá-la para lá por causa dos gritos e das gargalhadas. Não queria correr o risco de os vizinhos ouvirem. Hoje enquanto descíamos para lá ela passou a mão em um litro de uísque que estava ali naquele balcão junto com as outras bebidas do meu pai. Tinha mais da metade dentro, e ela bebeu tudo enquanto transávamos. Depois apagou.

             – Deixa ver se eu entendi: A Vanessa, a maior patricinha que já conheci, fez sexo selvagem e sadomasoquista com você, bebeu meio litro de uísque e agora está dormindo no sofá do seu porão? – perguntei, tentando deixar claro o quão insano isso parecia.

            – Isso mesmo! – reafirmou Guga, começando a chorar de novo – Mas não foi apenas sexo selvagem e sadomasoquista... Você precisa ver o que aquilo fez com o meu pau! Está doendo pra caralho e...

            Guga começou a abrir o zíper da calça jeans, mas eu o interrompi.

               – Eu não quero ver o seu pau! – gritei, levantando do sofá – Quero ver a Vanessa.

           – Pode ir lá no porão – disse Guga, fechando a calça novamente – Mas eu não vou descer com você. Não vou descer lá nunca mais!

            Concluí que era melhor acabar com aquela história de uma vez por todas. Se Vanessa estivesse lá – o que eu duvidava – então teríamos um problema provavelmente ligado a surtos psicóticos e drogas pesadas. Se não estivesse, então precisaríamos pensar em como explicar aos pais do Guga que ele precisava de tratamento psiquiátrico urgente.

            Me dirigi para a porta do porão sem dizer nada. Me pareceu que quanto mais fosse falado sobre aquela loucura toda, pior seria. Guga me seguia à certa distância, visivelmente amedrontado. A casa estava mergulhada na penumbra. Achei que poderia até já ser noite lá fora.

            A porta do porão ficava na entrada da cozinha. Estava entreaberta e havia uma fraca luminosidade vindo lá de baixo. Olhei para Guga e ele deu um passo atrás, deixando claro que não iria descer comigo.

            – Você é um cara inteligente, sempre tira 10 na escola... Vai saber o que fazer para resolvermos isso. – disse ele, tentando parecer esperançoso.

            Respirei fundo e desci as escadas. O porão era grande, mas mal iluminado por apenas uma lâmpada comum no centro do teto baixo. Havia móveis, caixas e utensílios diversos espalhados por todos os lados. Parecia que raramente alguém descia lá. No lado direito da escada tinha uma mesa com uma caixa de papelão em cima. Dentro da caixa vi diversos livros e, entre eles, o tal Livro de São Cipriano. A capa não era de aço, mas pintada e adornada de tal forma que parecia ser. Tocando era bem fácil perceber a diferença. Mas, mesmo assim, era algo sinistro. Embora eu não acreditasse nessas coisas, parecia mesmo algo dotado de algum tipo de energia.

            Também havia dentro da caixa outra coisa que me chamou a atenção: um objeto em forma de pirâmide, de uns 10 centímetros de altura e cor preta. Apenas olhando não dava para saber se era feito de metal ou algum tipo de mineral. Curioso, pensei em pegar a pirâmide na mão, mas, antes mesmo que eu tocasse no objeto, ele pareceu vibrar e emitir um rápido flash luminoso, como o de uma máquina fotográfica. Levei um susto e me afastei da caixa.   

            Foi então que aquela sensação de desconforto e medo – até ali mais ou menos controlada – aumentou absurdamente. Vi que logo adiante de mesa havia um pequeno espaço delimitado no chão por um tapete retangular. No fundo estava uma antiga televisão desligada, ladeada por duas poltronas desbotadas. Em cima de uma pequena cômoda estavam empilhados diversos exemplares de revistas em quadrinhos, como Mad, Zagor, Tex, Kripta e Spektro. Mas, o que fez o meu sangue gelar nas veias foi avistar o sofá, logo ao lado. Realmente, havia alguém deitado ali. Me aproximei lentamente. Parecia que o coração iria saltar do peito. Então eu vi. Não era Vanessa quem estava deitada lá. Mas eu sabia quem era. Reconheci sem dificuldades uma prostituta imunda e fedorenta, de cerca de 40 anos de idade, conhecida como “Marta Fogueteira” que passava a noite bebendo, fumando maconha e fazendo ponto na Praça da Tainha. Era alvo de gozações de todos. Quando algum garoto da nossa idade reclamava de falta de namorada, era de praxe se dizer que o mesmo deveria recorrer aos serviços da Marta Fogueteira.

                Me aproximei do sofá, sem saber ao certo o que fazer, mas nem houve tempo para pensar em algo. Ela abriu os olhos de repente e me encarou. Quando vi aqueles olhos – que pareciam qualquer coisa, menos humanos – então entendi o significado do terror. Sua carranca esboçou um sorriso animalesco.

            – Oi, gatão! Veio me comer também? – disse Marta Fogueteira, com uma voz que me lembrou a do vocalista da banda Venom.

            Recuei, apavorado, tropecei em algo e cai sentado. Numa fração de segundos ela já estava sobre mim.

             – Ponha esse pau para fora e vamos começar a diversão! – gritou a coisa, enquanto tentava abaixar a minha bermuda.

            Em pânico, gritei, esperneei e acabei atingindo a coisa com um chute na boca. Ela soltou um berro horrível e recuou com as mãos no rosto.

            – Sua bicha! Seu puto! Veadinho! – rosnava o ser que parecia com a Marta Fogueteira – Vou arrancar esse seu pauzinho de anão e dar para um cachorro sarnento comer!

            Sem parar de gritar, corri de volta para a escada, trombando e derrubando no chão tudo o que havia pela frente. No meu íntimo eu tinha certeza de que se aquela coisa me pegasse ela iria realmente fazer aquilo que estava ameaçando.

             – Onde já se viu um marmanjo desses ter medo de boceta?! – gritou a coisa, me seguindo de perto, logo antes de soltar uma gargalhada horripilante.

            Quando cheguei ao topo da escada, praticamente me joguei para fora. Rastejei pelo chão da cozinha, tentando me afastar o mais rápido possível, mas, para o meu desespero, senti uma mão agarrando com muita força o meu tornozelo e me puxando de volta para a escada. “O pai do Guga tem uma arma, não é mesmo?”, foi o pensamento que passou pela minha cabeça enquanto gritava por socorro.

            Me agarrei com as duas mãos no marco da porta e quando olhei para baixo vi a Marta Fogueteira – ou a coisa que se parecia com ela – praticamente escalando a íngreme escada, utilizando as minhas pernas como apoio. Quando ela estava quase na linha da minha cintura, reuni todas forças que consegui e desferi uma joelhada. O golpe a atingiu no queixo. Com o impacto, ela me largou e rolou escada abaixo.

            Corri novamente para fora e tão logo adentrei a cozinha, Guga fechou a porta de acesso ao porão detrás de mim e trancou-a com a chave.

               – Acredita em mim agora?! – gritou ele, apavorado.

            – Guga, não é a Vanessa quem está lá embaixo! É a Marta Fogueteira! Será que você não percebe?!

            Ele ficou me olhando, com cara de quem não estava entendendo nada.

            – Acho que sei o que aconteceu... – falei, tentando manter a calma – O demônio que você liberou com o ritual precisava de um corpo para se manifestar. Então ele possuiu a Marta Fogueteira e deve ter usado algum tipo de poder para fazer você pensar que era a Vanessa. Entendeu? Uma ilusão!

            – Marta o quê? – balbuciou ele, parecendo incrédulo.

            – Fogueteira! A Marta Fogueteira!

            Nesse instante, um estrondo pavoroso quase me fez infartar. Olhei para a porta do porão e vi lascas de madeira caindo através de um buraco.

            – Achei um monte de ferramentas aqui embaixo! – berrou o Demônio-Marta, com sua voz de Cronos – Até um machado!

            Com outra machadada, metade da porta veio abaixo. Guga saiu correndo e gritando através do corredor e sumiu no interior da casa. Eu não pude fazer o mesmo, pois a coisa bloqueou o  meu caminho com o machado em mãos. Então corri para o lado oposto da cozinha, onde ficava a porta que dava acesso ao quintal e a garagem, mas ela não abria. Não importa o quanto eu tentasse girar a maçaneta, ela simplesmente não abria.

            – Pode abaixar a cueca, meu bem! – rosnou o demônio, agitando o machado de forma provocativa – Está na hora de abater o pintinho!

            A janela era basculante, então não tinha como fugir através dela. Minha única esperança seria tentar correr até a gaveta dos talheres e pegar uma faca. Mas, mesmo assim: faca contra machado?! Que chance eu teria?!

            Porém, não havia outra alternativa. Ou tentava isso ou seria esquartejado dentro de poucos segundos. Me joguei na direção da gaveta. Para meu desespero, parecia que eu me movia em câmera lenta. Vi o demônio vindo pela direita, com o machado erguido sobre a cabeça, pronto para descer sobre mim. A coisa tinha um brilho de ódio no olhar. Não ia dar tempo. Fechei os olhos e me encolhi de encontro à pia, esperando o golpe.

            Então ouvi um estrondo ensurdecedor seguido de um baque que fez tremer o assoalho aos meus pés. Como não senti nada me atingindo, abri os olhos e dei de cara com Guga no outro lado da cozinha, segurando um revólver com mão trêmula e rosto molhado por lágrimas. Marta Fogueteira estava caída aos meus pés, dentro de uma poça de sangue que aumentava de tamanho rapidamente. Seus olhos sem vida já não tinham mais aparência demoníaca. Ela parecia apenas uma pobre mendiga desdentada.

            – Meus Deus! – começou a balbuciar Guga – Eu matei a Vanessa! Matei a Vanessa!

            – Calma, Guga! Você fez isso para me salvar! – disse eu, tentando me recompor e confortá-lo ao mesmo tempo – Veja! Não é a Vanessa! É a Marta Fogueteira!

            – Os vizinhos devem ter ouvido o tiro... Meu pai vai ficar sabendo que eu peguei a arma dele e vai ficar bravo comigo! – dizia Guga, começando a chorar de forma mais desesperada do que antes.

            – Ouça, eu tenho uma ideia! – falei, tentando demonstrar convicção – Foi com o Livro de São Cipriano que tudo começou, certo? Então a solução para isso também está no livro. Eu vou descer ao porão para pegá-lo e aí vamos dar um jeito, ok?

             – Vanessa... Vanessa... – resmungava Guga, com olhar vidrado, parecendo nem ouvir o que eu estava falando.

            Decidi deixar para lá e agir. Desci rapidamente as escadas do porão e peguei o livro de dentro da caixa de papelão. Quando comecei a subir de volta para a cozinha, ouvi Guga gritando “Me perdoa, Vanessa!” e então outro estrondo de tiro ecoou pela casa. Me encolhi instintivamente junto aos degraus e permaneci assim por alguns segundos.

            – Guga?! Guga?! – gritei, já temendo pelo pior.

            Como não tive resposta, subi correndo os degraus que ainda faltavam. E então Guga estava lá, sentado no chão da cozinha, com o corpo recostado na parede respingada de sangue. A arma pendendo da mão direita, o buraco ensanguentado na têmpora.

            Em desespero, olhei ao redor, como se procurando algum tipo de ajuda, mas o que vi foi justamente o contrário: a manifestação do mais puro terror. Do cadáver da Marta Fogueteira estava saindo uma espécie de fumaça, ou melhor, parecia uma névoa, que rapidamente começou a se condensar e virar algum tipo de gosma. Em poucos segundos, aquela meleca nojenta começou a formar um corpo, mas era a coisa mais horrível que eu já tinha visto. Sequer tinha imaginado alguma vez algo tão bizarro. Era uma criatura com olhos enormes e com um corpo gelatinoso de onde saiam tentáculos, línguas, pênis e vaginas, mas tudo isso cheio de deformidades e aspecto pavoroso.

             – É o demônio... – disse uma voz às minhas costas – ... O Demônio da Luxúria... da perversão sexual...

            Quando olhei para trás, quase tive um ataque cardíaco. Era o cadáver do Guga que estava de olhos abertos e falando comigo, só que a voz não era do Guga. Parecia uma voz vindo diretamente do inferno. Como se não bastasse, o monstro começou a se mover na minha direção, emitindo um som que parecia risos provocativos.

        Naquele instante, ouvi sirenes ao longe, mas que se aproximavam rapidamente. Isso pareceu despertar novamente o meu instinto de sobrevivência e corri para fora da cozinha, sem nem olhar para trás. Atravessei a casa escura com o livro debaixo do braço e saí pela porta da frente. Já estava escuro do lado de fora, e a escuridão foi aumentando e me envolvendo conforme eu dava alguns passos pela calçada. Escuridão, sirenes, vertigem... e um baque.

 

*

            Abri os olhos ainda sentindo tontura, sem saber por quanto tempo havia ficado desacordado. Não parecia ter sido muito. Tentei me mover, mas não consegui. Então percebi que estava afivelado a uma maca, no interior de uma ambulância.

          – Já acordou?! – perguntou de forma mal-humorada um enfermeiro meio careca que estava sentado ao meu lado – Se não quiser tomar mais injeção é melhor ficar calmo. Chega de falar bobagem.

            – Que bobagens eu falei? – perguntei, tentando me lembrar dos últimos instantes.

           – Alguma coisa sobre possuir a Marta Fogueteira. – respondeu ele, sem disfarçar o descontentamento – Não tem vergonha? Um garoto da sua idade transando com essas prostitutas fedorentas?!

            – Se ainda fosse com aquelas de Imbé, que são mais limpinhas! – emendou de forma debochada outro enfermeiro, um grandalhão, que acabava de chegar não sei de onde.

            – Não é nada disso! – gritei – Por que acham que o Guga atirou nela?!

            – Quem atirou em quem? – perguntou o careca, olhando para o outro e depois para mim, com cara de quem não estava entendendo nada.

            – O Guga atirou na Marta Fogueteira e depois se matou! – respondi, sentindo as lágrimas umedecendo meus olhos – Ela estava possuída pelo demônio, mas depois o demônio saiu do corpo dela e tentou me pegar!

            – Onde?! Quando?! – perguntou o grandalhão, visivelmente espantado.

            – Lá dentro, na cozinha... – respondi, sem conseguir conter o choro – E o demônio fez o corpo do Guga falar, mesmo depois de morto!

            – Você está mesmo doidão, rapaz! – disse o careca – Não há ninguém lá dentro. A casa está vazia. Os donos já foram chamados.

            – Mas, como?! – gritei, tentando me soltar da maca – Eu tenho certeza!

            – Veja o tipo de coisa que esses moleques andam lendo! – disse o grandalhão apontando para o Livro de São Cipriano que estava ao lado da maca, junto com os meus chinelos – Não me admira que fiquem loucos.

            – Certo, já podem ir. – disse um policial militar bigodudo se aproximando da ambulância – Os pais do garoto já foram avisados e estão indo direto para o hospital. Alguém da Civil vai ir para lá também.

            – Esperem! Mas e o Guga?! E a Marta Fogueteira?! – gritei, irritado por não me darem ouvidos.

            – Pode fechar as portas que já estou aplicando mais calmante. – disse o careca para o outro enfermeiro, enquanto se aproximava de mim com uma seringa em mãos.

            Tentei reclamar, mas não adiantou. A nova dose de calmante devia ter sido bem mais forte, pois senti que rapidamente estava perdendo os sentidos. As portas foram fechadas e a ambulância foi ligada. Ainda pude ouvir do lado de fora uma voz feminina perguntando algo que não consegui entender, e então o policial respondeu: “É apenas um garoto drogado tendo um surto”. Mas, me chamou a atenção o fato de que a voz da mulher lembrava de forma sinistra a do vocalista da uma banda de Heavy Metal chamada Venom.

            – ... na verdade, acho que parece mais com a voz do Lemmy... vocalista do Motörhead... – balbuciei, já fechando os olhos.

            – O quê?! – perguntou o enfermeiro, em tom irritado.

            – O demônio... tem muitos truques e disfarces... – consegui dizer, antes de perder a consciência novamente.