3 de jan. de 2021

BLECAUTE

 

Por André Bozzetto Junior

             O sol já começava a abandonar a paisagem de forma lenta e inexorável quando a dupla de andarilhos chegou ao sopé do morro, fez a curva à esquerda e contemplou a pequena planície quase que inteiramente ocupada pelo grande trevo rodoviário.

            – Veja: seguindo por ali chegaríamos a Erechim. – explicou Douglas, gesticulando da forma que lhe era habitual – Mas nós vamos para lá. Passaremos o Posto Fiscal e logo depois chegaremos à ponte sobre o Rio Uruguai. Ao atravessá-la já estaremos em Santa Catarina.

            – Legal! Então amanhã chegaremos a Chapecó. – disse Jorge, observando os arredores com interesse – Que tal acamparmos por aqui mesmo? Há policiais ali no posto de fiscalização, então acho que é seguro.

            – Ora, sem dúvida que é seguro, mas que graça teria acampar aqui, cercados por asfalto?! – retrucou Douglas – Vamos até a ponte! Tenho certeza de que você vai gostar do lugar.

            Resignado, Jorge consentiu com um aceno de cabeça, e a dupla continuou sua caminhada. Os rapazes passaram pelo posto de fiscalização, sem deixar de perceber que tanto os funcionários quanto os policiais olhavam para eles com expressões sérias, que pareciam denotar algo que ia da curiosidade à desconfiança.

            – Eles devem estar pensando: “Será que esses babacas não têm nada melhor para fazer do que ficar o dia inteiro andando pelas estradas com mochilas enormes nas costas?!” – cochichou Jorge, de forma zombeteira.

            – Cara, eu já me dou por satisfeito por eles não terem nos abordado para revistar nossas mochilas! – respondeu Douglas, em tom não menos sarcástico.

            Poucas centenas de metros à frente, a dupla encontrou na beira da rodovia um grupo de crianças indígenas, que vendia frutas aos motoristas que por ali passavam. Uma menina com não mais do que cinco ou seis anos foi até eles e ofereceu laranjas.

            – Não, obrigado, mocinha. Já temos bastante peso para carregar. – disse Douglas, afagando a cabeça da criança.

            – São de que grupo? Guarani? – perguntou Jorge.

            – Kaingang. – respondeu Douglas – Assim como todos os demais que avistamos pelos outros lugares por onde passamos. Há muitos deles nessa região.

            Quando os dois rapazes já começavam a se afastar, outro integrante do grupo de crianças indígenas – que aparentava ser o mais velho – correu na direção deles de maneira afoita.

            – Vão de ônibus! – disse o menino, com expressão tensa no semblante.

            – O que você disse? – retrucou Douglas.

            – Esperem ali e vão embora de ônibus. Já é quase noite.

            – Não. Nós gostamos mesmo de caminhar. Vamos acampar perto do rio.

            – Hoje de noite não! Hoje de noite não! – exclamou o indígena, com grande agitação.

            – O que é isso?! – retrucou Douglas, achando graça da situação – O indiozinho tá doidão?!

            – Compre umas laranjas e ele sossega! – disse Jorge, em meio a risadas.

            – Que nada! Pode ser contagioso! – respondeu Douglas, gargalhando – Vamos embora!

            Os andarilhos então se afastaram, enquanto os pequenos indígenas os observavam com expressões aborrecidas.

            Quando a longa ponte que divide os estados do Rio Grande do Sul e Santa Catarina ficou visível diante da dupla de viajantes, as cores sombrias da noite já prevaleciam sobre os tons avermelhados do entardecer.

            – Você tinha razão! – disse Jorge – A visão é muito bonita daqui de cima da ponte.

            – Sim... E quer saber do melhor? Está vendo aquela pequena vila de pescadores lá no lado catarinense? Tenho certeza de que lá existe pelo menos um ou dois botecos. Sabe o que isso significa?

            – Cerveja gelada! – exclamou Jorge, com grande satisfação – Vamos logo!

            – Certo, seu bêbado! Mas antes vamos fazer algumas fotos aqui na ponte.

            Enquanto os rapazes fotografavam um ao outro com o plácido Rio Uruguai ao fundo, um carro que se dirigia para o lado catarinense aproximou-se em baixa velocidade e estacionou.

            – Oi, gurizada! – disse o motorista, abaixando o vidro – Estão indo para Chapecó?

            – Sim. – respondeu Douglas – Devemos chegar lá amanhã de tarde.

            – Então venham de carona comigo.

            – Não, obrigado. Estamos treinando para fazer o Caminho de Santiago de Compostela, então precisamos caminhar. Hoje acamparemos por aqui mesmo.

            – Vocês têm certeza?

            – Sim, temos.

            – Então acampem ao lado da casa de algum pescador. E certifiquem-se de deixar uma fogueira acesa na frente da barraca durante toda a noite.

            – Certo, pode deixar. Obrigado.

            O carro partiu e a dupla de amigos permaneceu entreolhando-se com expressões intrigadas. Contudo, isso durou apenas alguns segundos. Logo Douglas apontou para a pequena vila ribeirinha, Jorge gritou “Cerveja!” e ambos se desataram a percorrer velozmente os últimos metros da ponte que os separava do estado de Santa Catarina.

            As luzes das simplórias casas do vilarejo já estavam acesas quando os andarilhos adentraram na poeirenta rua de terra batida. O primeiro bar do qual se aproximaram estava lotado, com todas as suas mesas ocupadas por homens que observavam os recém-chegados com expressões desconfiadas e até mesmo hostis. Os viajantes perceberam que vários dos frequentadores estavam armados com facas e até revólveres que não faziam questão de esconder. Discretamente, Douglas apontou para um barracão no outro extremo da vila, que também aparentava ser um bar. Jorge consentiu com um aceno de cabeça e ambos partiram naquela direção.

            Quando chegaram ao outro bar – que ficava a poucos metros da margem do rio – os rapazes foram recebidos com a mesma velada hostilidade, tendo com única diferença o fato de que neste segundo recinto não havia mais do que sete ou oito fregueses, metade dos quais também estavam armados.

            – Por favor: uma cerveja! – gritou Douglas para o atendente, enquanto ele e o companheiro de viagem sentavam-se em uma mesa próxima a uma janela.

            – Douglas, o que será que essa gente tem de errado? – cochichou Jorge.

            – Está se referindo ao fato de estarem armados? Acontece que esses caras...

            – Não só por isso! – interrompeu Jorge – O fato é que todos parecem tão desconfiados e misteriosos, como se existisse algo que não quisessem que ficássemos sabendo.

            – Você anda assistindo filmes demais! – retrucou Douglas, rindo debochadamente – Veja: o bodegueiro já está trazendo a nossa cerveja!

            Tão logo o rapaz completou sua frase, uma repentina queda de energia mergulhou o vilarejo inteiro na escuridão. Quase que instantaneamente a dupla de viajantes ouviu murmúrios de desaprovação vindos de diversos pontos diferentes, acompanhados do que parecia ser gritos de espanto emitidos por mulheres e crianças. Depois tudo submergiu em um silêncio tão denso que parecia de sensação quase tátil.

            – Era só o que faltava! – resmungou Jorge – Um blecaute!

            A frase do andarilho serviu para desencadear uma série de outros questionamentos e asserções que vieram na sequência.

            – Como é possível?! – esbravejou uma voz masculina – Nem está chovendo!

            – Justo hoje! – exclamou outra.

            – Quem mais está armado?! – indagou uma terceira voz.

            – Eu estou!

            – Fiquem calmos! – gritou alguém, dando aos viajantes a impressão de ser o dono do bar – Logo vão ligar o gerador!

            Seguiram-se mais alguns angustiantes instantes daquele silêncio que parecia cada vez mais aterrador. Subitamente, uma voz desesperada passou a ecoar pela vila:

            – O gerador está quebrado! O gerador está quebrado!

            Uma nova onda de murmúrios e gritos pode ser ouvida então. Dessa vez não denotavam aborrecimento, mas sim medo. As pessoas estavam claramente apavoradas. Ouviam-se barulhos de portas e janelas sendo fechadas, carros partindo em alta velocidade e passos de indivíduos que corriam apressadamente pela rua. Dentro do bar, além dos sons de gente trombando contra as mesas, derrubando copos e garrafas e partindo porta afora, a dupla de andarilhos ouvia frases como “Corram para suas casas!”, “Fujam depressa!” e “Armas em punho!”, além de xingamentos do tipo “Esses índios malditos!” e “Vamos mandar bala nesses desgraçados!”.

            – Douglas! O que está acontecendo?! – indagou Jorge – Será que devemos...

            O rapaz interrompeu sua frase e tremeu sobressaltado ao ouvir os novos sons que vinham do exterior. Os gritos – que naquele momento eram mais intensos do que nunca – expressavam dor e desespero. Tiros ecoavam pelas redondezas. Mas o mais aterrador era uma série de outros barulhos que ressoavam em meio à confusão geral. Tratava-se de urros, rosnados e uivos emitidos por algum tipo de animal enfurecido. De forma mais específica, não parecia haver apenas um animal, mas vários.

            Os ruídos animalescos rapidamente se tornaram mais próximos, aumentando a confusão e o desespero que imperava no interior do bar tomado pela escuridão, até que uma frase gritada a plenos pulmões por alguém tomado pelo pavor acabou por desencadear um verdadeiro pandemônio no recinto:

            Eles já estão aqui! Eles já estão aqui!

            Nesse mesmo instante, a parede leste do bar veio abaixo fazendo voar pelo ambiente pedaços de tábuas e lascas de madeira. Graças à pálida luminosidade da lua cheia que invadiu o recinto através do buraco recém aberto, Jorge teve a nítida impressão de ter observado dois vultos enormes se precipitando para dentro. Em um instante de deturpada reflexão, ele se questionou: seria mesmo possível que seus olhos tivessem vislumbrado duas coisas similares a cães entrando no bar correndo de forma bípede? Poderiam essas coisas serem maiores do que ele próprio, que tinha mais de um metro e oitenta de altura?

            As perturbadas indagações do rapaz se desfiram quando Douglas o agarrou pelo braço e o puxou na direção da janela. No curto trajeto que o conduziu ao ambiente externo, Jorge sentiu um líquido quente e viscoso respingar no seu rosto, e não teve dificuldades para deduzir que era sangue. Tiros ressoavam no interior do bar em meio a gritos enregelantes e urros ensurdecedores. Do lado de fora, ele ainda pode ouvir a voz de Douglas gritando: “No rio! Rápido!” e em seguida veio o choque com a água fria que hipertrofiou sua percepção e o fez entender que era preciso nadar, e depressa.

            Sob o luar, que refletia tenuamente na placidez do rio, Jorge percebeu que Douglas nadava ao seu lado.

            – Vamos até a ponte! – disse ele – Não está longe.

            No vilarejo obscurecido, a barulheira tinha cessado quase por completo. Não havia mais pessoas para gritar, e as bestas estavam entretidas roendo os ossos de suas vítimas.


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